A PRESENÇA FEMININA NA MÚSICA CLÁSSICA: TRAJETÓRIA HISTÓRICA, DESIGUALDADES E CONTRIBUIÇÕES ARTÍSTICAS - §4
Por Janilson Ferreira Fialho Filho
RESUMO
4. IMPORTÂNCIA DAS COMPOSITORAS E MUSICISTAS MULHERES
O resgate histórico e a valorização da produção feminina na música clássica são ações essenciais não apenas para corrigir distorções historiográficas, mas também para enriquecer o repertório com perspectivas estéticas mais diversificadas. Afinal, como já observamos antes, durante muitos séculos a narrativa oficial da música erudita foi construída majoritariamente a partir de nomes masculinos, relegando a contribuição de mulheres a notas de rodapé ou, em muitos casos, ao completo esquecimento. Essa lacuna não é apenas uma questão de justiça histórica, mas também — como bem afirmamos anteriormente — de um empobrecimento cultural, porque ao ignorar a produção feminina, perdemos de vista um vasto conjunto de obras que oferecem novas abordagens formais, experimentações sonoras e leituras sensíveis do mundo. Clara Schumann, Fanny Mendelssohn, Sofia Gubaidolulina, Germaine Tailleferre e Kaija Saariaho, por exemplo, não apenas dominaram as técnicas de composição de seu tempo, mas também imprimiram às suas obras um olhar estético moldado por experiências sociais distintas, muitas vezes atravessadas pela condição de gênero (Siffert, 2022). Essas compositoras souberam dialogar com as correntes estéticas vigentes, ao mesmo tempo em que introduziram nuances melódicas, texturas e escolhas harmônicas que carregavam marcas de vivências e sensibilidades próprias.
No Brasil, esse processo de resgate e valorização ganha contornos ainda mais urgentes devido ao histórico de invisibilidade das mulheres no cenário erudito nacional. O portal Concerto (2021) destaca compositoras contemporâneas como Valéria Bonafé, Marisa Rezende e Jocy de Oliveira, que não apenas ampliam o repertório, mas também desafiam a noção de que a música erudita é um campo estagnado ou restrito a linguagens tradicionais. A obra de Bonafé, por exemplo, incorpora elementos da música experimental e dialoga com temas de identidade e memória; Rezende explora estruturas abertas e interações entre performers, rompendo com o formato fixo da partitura tradicional; já Jocy de Oliveira, pioneira na fusão de música e multimídia no Brasil, cria experiências imersivas que integram som, imagem e performance cênica. A atuação dessas artistas evidencia que a presença feminina não se limita a ocupar espaços previamente definidos, mas contribui para expandir as fronteiras formais e conceituais da música contemporânea.
Além das compositoras, a música clássica contemporânea também é marcada pela atuação de regentes e intérpretes que ampliam a representatividade feminina no cenário internacional e brasileiro. Nomes como Marin Alsop, primeira mulher a reger uma orquestra em um concerto de encerramento dos Proms da BBC (além de ter sido regente da OSESP), e Simone Menezes, regente brasileira reconhecida por projetos inovadores, mostram que a batuta já não é exclusividade masculina. No campo dos instrumentos, destacam-se violinistas como Hilary Hahn, célebre por interpretações de Bach e de repertório contemporâneo, e Lucia Micarelli, que transita entre o clássico e o popular; pianistas como Martha Argerich, cuja carreira é referência absoluta em virtuosismo, e Gabriela Montero, conhecida por suas improvisações; além da violonista croata Ana Vidovic, e das violonistas brasileira Gabriela Leite e Badi Assad, que expandem as possibilidades tímbricas do violão clássico com forte influência da música erudita e popular. Essas artistas, aliando excelência técnica e presença de palco, contribuem para renovar o repertório, atrair novos públicos e questionar os paradigmas de gênero ainda presentes no universo da música erudita.
Assim, no contexto internacional, a valorização das compositoras e intérpretes vão além da recuperação de um repertório esquecido: trata-se de uma reconfiguração do próprio cânone. Quando obras de mulheres passam a integrar programações de orquestras, festivais e instituições de ensino, abre-se espaço para que novas gerações de compositoras e intérpretes vejam suas carreiras como possibilidades reais e legítimas. Esse efeito de representatividade ativa rompe o ciclo histórico de exclusão, criando um ambiente em que a diversidade estética é não apenas tolerada, mas incentivada. A ausência dessa visibilidade mantém a ideia equivocada de que as mulheres foram agentes secundários na história da música, quando na realidade muitas delas exerceram papéis centrais na inovação e renovação das linguagens musicais.
A dimensão simbólica desse reconhecimento também é fundamental. Andressa Nathanailidis (2020) afirma que valorizar a presença feminina na música clássica não significa apenas reconhecer talentos individuais, mas reescrever a própria história da música. Essa reescrita implica uma revisão crítica de narrativas consolidadas, questionando por que determinadas obras ganharam status de referência enquanto outras foram marginalizadas. Trata-se de um processo que demanda pesquisas acadêmicas, projetos curatoriais e políticas culturais comprometidas com a pluralidade, para que o repertório disponível ao público reflita de forma mais justa a contribuição de todos os agentes envolvidos na construção da tradição musical.
Em um cenário ainda marcado por desigualdades estruturais, essa valorização precisa ser acompanhada por ações concretas que garantam acesso equitativo a recursos, oportunidades e espaços de difusão. Isso significa ampliar bolsas e financiamentos para compositoras e intérpretes, assegurar paridade na programação de festivais e temporadas de concertos, e promover registros fonográficos e editoriais que deem visibilidade a obras femininas. Tais medidas não apenas corrigem desequilíbrios históricos, mas também fortalecem a vitalidade cultural do presente, permitindo que diferentes vozes e perspectivas alimentem o desenvolvimento da música erudita.
Assim, reconhecer e promover a importância das compositoras e musicistas mulheres não é um ato pontual ou meramente comemorativo, mas um compromisso contínuo com a diversidade estética e a justiça cultural. Ao trazer para o centro da cena obras e trajetórias que foram sistematicamente invisibilizadas, o campo musical se torna mais representativo, plural e rico em possibilidades criativas, estabelecendo pontes entre passado, presente e futuro.
(Continua na próxima postagem)
REFERÊNCIAS
AO REDOR. A presença feminina na música erudita. In Ao Redor, [s.d.], 09 de abr. de 2024. Disponível em: https://www.aoredor.blog.br/post/a-presen%C3%A7a-feminina-na-m%C3%BAsica-erudita. Acesso em: 13 ago. 2025.
CONCERTO. Vinte e uma compositoras, da Idade Média até os nossos dias. In Concerto, 08 mar. 2021. Disponível em: https://www.concerto.com.br/noticias/musica-classica/vinte-e-uma-compositoras-da-idade-media-ate-os-nossos-dias. Acesso em: 13 ago. 2025.
CRUZ, Aline. Como as mulheres estão desconstruindo a dominação masculina na música erudita. In Revista Trip, 2022. Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/como-as-mulheres-estao-desconstruindo-a-dominacao-masculina-na-musica-erudita. Acesso em: 13 ago. 2025.
NATHANAILIDIS, Andressa. As mulheres na música clássica. In Terra da Música Blog, 2020. Disponível em: https://terradamusicablog.com.br/as-mulheres-na-musica-classica/. Acesso em: 13 ago. 2025.
ORLANDI, Ana Paula. Os impactos do desequilíbrio de gênero na música. In Revista Pesquisa Fapesp, 2022. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/os-impactos-do-desequilibrio-de-genero-na-musica/. Acesso em: 13 ago. 2025.
PREVIDELLI, Fábio. Maria Anna, a talentosa irmã de Mozart cuja carreira foi impedida pelos padrões controversos do século 18. In Revista Aventuras na História, [S.l.], 24 dez. 2020. Disponível em: https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/reportagem/talentosa-irma-de-mozart-que-foi-esquecida-pelo-machismo-do-seculo-18.phtml. Acesso em: 15 ago. 2025.
SIFFERT, Carlos. Mulheres na música clássica. In Clássicos dos Clássicos, 2022. Disponível em: https://classicosdosclassicos.mus.br/mulheres-na-musica-classica/. Acesso em: 13 ago. 2025.
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