A PRESENÇA FEMININA NA MÚSICA CLÁSSICA: TRAJETÓRIA HISTÓRICA, DESIGUALDADES E CONTRIBUIÇÕES ARTÍSTICAS - §2

Por Janilson Ferreira Fialho Filho

RESUMO

O texto a seguir é o apoio teórico utilizado em uma aula expositiva que eu ministrei na Escola de Música Genaldo Cunha Lins (Casa de Wellington Farias) para os meus alunos de violão clássico. Sempre que eu posso, complemento as aulas práticas de música com discussões acerca de assuntos relevantes ligados a história, sociologia e filosofia da música. Este assunto que abordei sobre a questão das mulheres na música, por exemplo, é bastante pertinente para eles criarem uma consciência crítica sobre a desigualdade e o machismo estrutural. Acompanhe a seguir o que foi abordado na aula.

2. PROBLEMA HISTÓRICO AO REDOR DO MUNDO

O histórico de exclusão feminina na música clássica é longo e profundamente enraizado nas estruturas sociais e culturais que moldaram o campo musical ao longo dos séculos. Desde os primórdios da tradição erudita ocidental, as mulheres tiveram participação ativa na composição, interpretação e transmissão musical, mas raramente receberam o mesmo reconhecimento, espaço e condições que os homens.

Como já mencionamos, ainda na Idade Média, a figura de Hildegard von Bingen constitui uma exceção notável. Ela compôs músicas, peças litúrgicas e obras filosóficas que atravessaram os séculos, tornando-se um raro exemplo de prestígio feminino em um contexto que relegava as mulheres, em sua maioria, ao anonimato ou a funções secundárias (Concerto, 2021). Aliás, por falar em anonimato, chega até a ser irônico que a primeira compositora que ousou assinar/registrar as próprias obras seja praticamente uma anônima para as pessoas. Sua trajetória demonstra que, quando as condições mínimas de educação, apoio institucional e liberdade criativa eram oferecidas, as mulheres podiam produzir obras de impacto duradouro, embora o reconhecimento público permanecesse raro.

O período Barroco, marcado pela efervescência criativa e pela profissionalização da música, também contou com figuras femininas de destaque, embora estas permanecessem em posições marginais no cenário oficial. Barbara Strozzi, descrita pela Revista Concerto (2021) como uma das compositoras mais prolíficas de sua época, ilustra bem essa situação. Apesar de sua vasta produção, suas obras circulavam majoritariamente em ambientes privados e restritos, evidenciando a resistência social e institucional à presença feminina nos espaços públicos de criação e performance musical. Essa limitação não se devia à falta de talento ou produtividade, mas sim a uma estrutura cultural que associava a vida pública e profissional ao universo masculino, restringindo as mulheres a papéis socialmente “aceitáveis” e controlados.

Mesmo com as mudanças sociais que acompanharam o Iluminismo, a Revolução Industrial e, posteriormente, as lutas feministas do século XIX e XX, a música erudita permaneceu como um território de difícil acesso para as mulheres. A resistência era particularmente acentuada no campo da regência, uma função associada à liderança e à autoridade, tradicionalmente vistas como atributos masculinos. Aline Cruz, na Revista Trip, (2022), destaca que as mulheres continuam sendo minoria absoluta nesse espaço, enfrentando não apenas a escassez de oportunidades, mas também a resistência ativa de músicos e gestores de orquestras. Isso revela que, mesmo em contextos recentes, os avanços conquistados não eliminaram a permanência de preconceitos estruturais, que seguem moldando as trajetórias e possibilidades profissionais das musicistas.

O século XX, entretanto, trouxe exemplos que desafiaram essa exclusão. Lili Boulanger, primeira mulher a vencer o prestigiado Prix de Rome, comprovou que o talento feminino podia alcançar o mais alto nível de excelência artística, mesmo sob um sistema social que ainda dificultava o acesso das mulheres à educação musical formal e ao mercado profissional. Casos como o dela demonstram que as barreiras não estavam relacionadas a uma suposta “incapacidade” ou “limitação artística”, mas sim a fatores sociais, econômicos e institucionais que condicionavam — e muitas vezes bloqueavam — o pleno desenvolvimento das carreiras femininas na música clássica.

Essas desigualdades, longe de serem apenas resquícios do passado, continuam a se manifestar no presente. As mulheres musicistas enfrentam uma multiplicidade de obstáculos: preconceitos explícitos, falta de apoio durante a maternidade, desigualdade salarial, menor visibilidade midiática e a concentração das posições de poder — como regências, direções artísticas e curadorias — nas mãos de homens (Orlandi, 2022). Esse quadro indica que a exclusão histórica deixou marcas profundas nas estruturas da música erudita, moldando não apenas a memória e o cânone musical, mas também o funcionamento contemporâneo das instituições e mercados musicais.

Ao observar esse cenário global, percebe-se que as dificuldades encontradas pelas mulheres na música clássica não se restringem a um tempo ou a um espaço específico: trata-se de um fenômeno histórico e internacional, sustentado por valores culturais, hierarquias de gênero e práticas institucionais excludentes. Contudo, para compreender plenamente a dimensão desse problema, é necessário analisar como ele se manifesta de forma particular no Brasil, país que, embora possua uma rica tradição musical e nomes femininos de destaque, reproduz em larga medida as mesmas barreiras históricas que limitaram a participação das mulheres ao redor do mundo. É a essa realidade que se volta o próximo capítulo.

(Continua na próxima postagem)

REFERÊNCIAS

AO REDOR. A presença feminina na música erudita. In Ao Redor, [s.d.], 09 de abr. de 2024. Disponível em: https://www.aoredor.blog.br/post/a-presen%C3%A7a-feminina-na-m%C3%BAsica-erudita. Acesso em: 13 ago. 2025.

CONCERTO. Vinte e uma compositoras, da Idade Média até os nossos dias. In Concerto, 08 mar. 2021. Disponível em: https://www.concerto.com.br/noticias/musica-classica/vinte-e-uma-compositoras-da-idade-media-ate-os-nossos-dias. Acesso em: 13 ago. 2025.

CRUZ, Aline. Como as mulheres estão desconstruindo a dominação masculina na música erudita. In Revista Trip, 2022. Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/como-as-mulheres-estao-desconstruindo-a-dominacao-masculina-na-musica-erudita. Acesso em: 13 ago. 2025.

NATHANAILIDIS, Andressa. As mulheres na música clássica. In Terra da Música Blog, 2020. Disponível em: https://terradamusicablog.com.br/as-mulheres-na-musica-classica/. Acesso em: 13 ago. 2025.

ORLANDI, Ana Paula. Os impactos do desequilíbrio de gênero na música. In Revista Pesquisa Fapesp, 2022. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/os-impactos-do-desequilibrio-de-genero-na-musica/. Acesso em: 13 ago. 2025.

PREVIDELLI, Fábio. Maria Anna, a talentosa irmã de Mozart cuja carreira foi impedida pelos padrões controversos do século 18. In Revista Aventuras na História, [S.l.], 24 dez. 2020. Disponível em: https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/reportagem/talentosa-irma-de-mozart-que-foi-esquecida-pelo-machismo-do-seculo-18.phtml. Acesso em: 15 ago. 2025.

SIFFERT, Carlos. Mulheres na música clássica. In Clássicos dos Clássicos, 2022. Disponível em: https://classicosdosclassicos.mus.br/mulheres-na-musica-classica/. Acesso em: 13 ago. 2025.

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