A PRESENÇA FEMININA NA MÚSICA CLÁSSICA: TRAJETÓRIA HISTÓRICA, DESIGUALDADES E CONTRIBUIÇÕES ARTÍSTICAS - §1

Por Janilson Ferreira Fialho Filho

RESUMO

O texto a seguir é o apoio teórico utilizado em uma aula expositiva que eu ministrei na Escola de Música Genaldo Cunha Lins (Casa de Wellington Farias) para os meus alunos de violão clássico. Sempre que eu posso, complemento as aulas práticas de música com discussões acerca de assuntos relevantes ligados a história, sociologia e filosofia da música. Este assunto que abordei sobre a questão das mulheres na música, por exemplo, é bastante pertinente para eles criarem uma consciência crítica sobre a desigualdade e o machismo estrutural. Acompanhe a seguir o que foi abordado na aula.

1. VISÃO GERAL DO PROBLEMA

Daremos início a essa discussão com uma simples pergunta: Cite o nome de 3 compositores? Com certeza você pensou em Johann Sebastian Bach, Mozart e Beethoven. Esses são os nomes que pensamos automaticamente. No entanto, podemos especificar a questão por época: cite 3 compositores do período barroco? Os primeiros nomes que viriam à mente seriam Handel, Telemann e Vivaldi. Se fizéssemos essa questão trocando o período barroco pelo classicismo, teríamos como resposta Haydn, Gluck e Salieri. Se mudarmos mais uma vez o período da pergunta para o romantismo vamos ter o seguinte resultado: Chopin, Liszt e Brahms. E, por fim, se fossemos para o modernismo teríamos os nomes de Debussy, Stravinsky e Schoenberg. O problema que levantamos aqui sobre essas respostas é: porque não surge em nossas listas de compositores um nome feminino com tanta facilidade? Onde estão as mulheres nas nossas listas? Essa pergunta é fundamental, pois escancara um problema estrutural que acaba formando a nossa consciência, e ninguém está isento de reproduzi-lo porque toda nossa educação,  principalmente as mais tradicionais, nos ensina a reproduzir o machismo estrutural.

Veja os livros sobre a história da música clássica, basta folhearmos qualquer um que logo veremos isso claramente, que a predominância dos nomes são de homens. Basta fazer uma simples pesquisa na Internet, os primeiros nomes que vão aparecer serão de homens. Ou pegar para ouvir um álbum de música clássica, a imensa maioria dos compositores gravados são homens. E quanto ao aprendizado musical? O repertório que aprendemos é predominantemente masculino. O problema é tão estrutural, tão enraizado na cultura, que praticamente agimos de modo inconsciente de acordo com ele, portanto, nós não percebemos que estamos reproduzindo uma lógica de poder estabelecida.

A música clássica consolidou-se historicamente em torno de um cânone construído predominantemente por homens, sustentado por práticas institucionais, currículos e repertórios que relegaram as mulheres a posições marginais. Segundo Ana Paula Orlandi (2022), o cenário atual ainda reflete essa desigualdade: as musicistas no Brasil enfrentam barreiras múltiplas, desde preconceitos explícitos até obstáculos estruturais ligados à maternidade e ao racismo, somados à menor visibilidade midiática e à desigualdade salarial.

Essa exclusão histórica não apenas restringiu o acesso das mulheres a espaços de criação e performance, como também reduziu a pluralidade estética da tradição musical. Durante séculos, compositoras tiveram suas obras esquecidas, ignoradas ou mesmo atribuídas a homens, impedindo que suas contribuições fossem devidamente reconhecidas e estudadas (Nathanailidis, 2020). Esse apagamento histórico operou de forma sistêmica: muitas artistas foram excluídas dos programas acadêmicos, não integraram coleções de partituras de referência e raramente receberam oportunidades de difusão em salas de concerto. Além do que era mais comum socialmente: quando a jovem musicista atingia a idade ideal para casa, ela era obrigada a abandonar as suas aspirações artísticas de âmbito profissional para se dedicar a função de esposa.

Podemos citar o caso de Maria Anna Mozart, a irmã mais velha de Wolfgang Amadeus Mozart, segundo Fábio Previdelli (2020), ela foi um prodígio musical que demonstrou talento extraordinário desde a infância, acompanhando o irmão em turnês pela Europa. No entanto, ao atingir a maioridade, sua trajetória artística foi abruptamente interrompida pelas rígidas expectativas sociais do século XVIII, que impunham às mulheres o afastamento da vida pública e das carreiras musicais. Assim, aos 18 anos, Maria Anna foi impedida de continuar se apresentando, permanecendo à margem do cenário musical enquanto Wolfgang alcançava fama internacional.

Em uma perspectiva geral, essa desigualdade pode ser observada desde as sociedades antigas, mas teceremos nossa genealogia a partir da Idade Média, quando a atividade composicional feminina, embora existente, encontrava severas restrições de circulação e legitimidade. Casos como o de Hildegard von Bingen, reconhecida tardiamente por sua obra místico-musical, revelam como a memória cultural foi seletivamente moldada. Entre os séculos XVIII e XIX, compositoras como Fanny Mendelssohn e Clara Schumann tiveram carreiras constantemente ofuscadas por laços familiares com músicos homens mais conhecidos. Mesmo no século XX, figuras como Lili Boulanger e Grażyna Bacewicz enfrentaram resistências institucionais apesar da qualidade e originalidade de suas obras (Concerto, 2021).

No Brasil, o processo não foi diferente. A presença feminina na música erudita se construiu contra a corrente, com mulheres muitas vezes atuando de forma autodidata ou em espaços paralelos à academia oficial. Embora existam exemplos importantes, como Chiquinha Gonzaga no século XIX, que uniu militância e criação musical, a historiografia musical brasileira ainda não incorporou de forma robusta as compositoras e intérpretes em seu núcleo central (Ao Redor, 2025). A desigualdade persiste tanto na programação das orquestras quanto no acesso a cargos de regência, composição e direção artística, funções ainda dominadas por homens (SIFFERT, 2022).

A ausência histórica de mulheres no repertório tradicional não representa apenas uma questão de justiça social, mas também um empobrecimento cultural. Ao excluir compositoras e musicistas, nega-se à sociedade um patrimônio artístico mais amplo e diverso. A recuperação e difusão dessas obras permite não apenas corrigir distorções históricas, mas também renovar as possibilidades estéticas e interpretativas da música clássica. Resgatar compositoras do passado e apoiar criadoras contemporâneas significa ampliar o horizonte do próprio cânone e reconhecer que a história da música é, de fato, plural e incompleta sem essas vozes.

(Continua na próxima postagem)

REFERÊNCIAS

AO REDOR. A presença feminina na música erudita. In Ao Redor, [s.d.], 09 de abr. de 2024. Disponível em: https://www.aoredor.blog.br/post/a-presen%C3%A7a-feminina-na-m%C3%BAsica-erudita. Acesso em: 13 ago. 2025.

CONCERTO. Vinte e uma compositoras, da Idade Média até os nossos dias. In Concerto, 08 mar. 2021. Disponível em: https://www.concerto.com.br/noticias/musica-classica/vinte-e-uma-compositoras-da-idade-media-ate-os-nossos-dias. Acesso em: 13 ago. 2025.

CRUZ, Aline. Como as mulheres estão desconstruindo a dominação masculina na música erudita. In Revista Trip, 2022. Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/como-as-mulheres-estao-desconstruindo-a-dominacao-masculina-na-musica-erudita. Acesso em: 13 ago. 2025.

NATHANAILIDIS, Andressa. As mulheres na música clássica. In Terra da Música Blog, 2020. Disponível em: https://terradamusicablog.com.br/as-mulheres-na-musica-classica/. Acesso em: 13 ago. 2025.

ORLANDI, Ana Paula. Os impactos do desequilíbrio de gênero na música. In Revista Pesquisa Fapesp, 2022. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/os-impactos-do-desequilibrio-de-genero-na-musica/. Acesso em: 13 ago. 2025.

PREVIDELLI, Fábio. Maria Anna, a talentosa irmã de Mozart cuja carreira foi impedida pelos padrões controversos do século 18. In Revista Aventuras na História, [S.l.], 24 dez. 2020. Disponível em: https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/reportagem/talentosa-irma-de-mozart-que-foi-esquecida-pelo-machismo-do-seculo-18.phtml. Acesso em: 15 ago. 2025.

SIFFERT, Carlos. Mulheres na música clássica. In Clássicos dos Clássicos, 2022. Disponível em: https://classicosdosclassicos.mus.br/mulheres-na-musica-classica/. Acesso em: 13 ago. 2025.

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