A Crítica de Adorno ao Rádio e os Equívocos de uma Interpretação Apressada

Por Janilson Fialho

A reflexão adorniana sobre os meios de difusão da arte — em especial, a música — é, frequentemente, alvo de incompreensões e leituras que tendem a reduzir seu alcance filosófico a um mero tecnofobismo elitista. É o que se percebe na tentativa, recorrente em certos debates contemporâneos, de refutar a crítica de Theodor W. Adorno à escuta da música sinfônica pelo rádio com argumentos que, embora bem intencionados, negligenciam a densidade estrutural de sua análise. Um exemplo disso aparece nessa postagem de uma redes social (confira esse link para acessá-la: https://www.instagram.com/p/DLx-E8tuMvV/?igsh=MThoYWNob2UzNjdudw==), onde se afirma que Adorno "toca num problema comum" ao mencionar a escuta da Quinta de Beethoven por meio do rádio, resumindo a experiência auditiva à sucessão de "melodias ou trechos, à maneira de citações ou destaques".

De fato, Adorno se mostra preocupado com os modos como os processos sociais interferem na recepção estética. Mas seu foco não é simplesmente o rádio, tampouco qualquer meio técnico em si, e sim a lógica que preside sua inserção na cultura — a lógica da indústria cultural, conceito que desenvolve com Max Horkheimer na Dialética do Esclarecimento (1944). A crítica ao rádio, portanto, não é uma condenação tecnológica, mas uma análise de como os meios de comunicação de massa, regidos pela mercadoria, formatam a escuta, promovem a repetição, o recorte, a distração e a passividade.

A postagem prossegue afirmando que Adorno "revela preocupação com os processos atinentes a absorver as composições" e "destaca um impasse comum numa escuta passiva: o insucesso em integrar as passagens da obra". Nesse ponto, a leitura é justa. Contudo, o erro começa ao afirmar que Adorno atrelaria o problema exclusivamente ao meio de difusão, ignorando as "particularidades dos ouvintes — como cada um absorve as peças". Aqui, há um mal-entendido fundamental: Adorno jamais nega a subjetividade do ouvinte; o que ele critica é o modo como essa subjetividade é condicionada e colonizada por estruturas sociais que moldam o gosto e o hábito.

É preciso lembrar que, para Adorno, a obra de arte exige esforço, um tipo de escuta ativa, reflexiva, mediada por atenção, historicidade e abertura à negatividade estética. Quando a música se torna pano de fundo, quando é consumida como trilha para o cotidiano automatizado — algo que o rádio industrializado promove —, há uma perda de experiência estética integral. A música deixa de interpelar e passa a acomodar.

O equívoco se aprofunda quando o autor da postagem ironiza essa crítica ao citar o exemplo de um "fazendeiro arruinado que se entorpece ouvindo Toscanini", como se Adorno culpasse o rádio pela estupidez de seu ouvinte. E pergunta: "Como se esse indivíduo não pudesse perder-se da obra na sala de concerto ou ouvindo discos de acetato". O sarcasmo esconde aqui uma deturpação: Adorno jamais afirmaria que a escuta ideal está garantida pelo concerto ou pelo vinil. Ele sabe que a alienação pode se dar em qualquer lugar — o ponto, novamente, é a lógica que preside a forma de recepção.

A postagem tenta ainda suavizar a crítica adorniana afirmando que "não há situação à prova de uma escuta passiva" e que sempre haverá ouvintes que aproveitarão as obras "pouco lhes atravancando o meio de difusão". Ora, é evidente que há exceções; Adorno não ignora isso. Mas ele está interessado nas tendências sociais dominantes, não em contraexemplos anedóticos. Trazer o episódio em que "Brahms dorme enquanto ouve a Sonata em si menor de Liszt executada pelo próprio" como tentativa de refutar a crítica adorniana é epistemologicamente ingênuo. A sonolência de Brahms não diz nada sobre a transformação da arte em mercadoria; trata-se de um dado biográfico, não de uma análise histórica.

A defesa de que, em 1940, "a qualidade sonora é desanimadora para os padrões de hoje" também perde o ponto. A crítica adorniana não é à baixa fidelidade técnica do rádio, mas à transformação da música em "commodity", como o próprio autor da postagem admite. No entanto, ao dizer que Adorno "circunda" essa questão nos parágrafos iniciais, parece não reconhecer que esta é justamente a espinha dorsal de sua crítica estética: a mercantilização da arte, sua redução a produto intercambiável e domesticado.

Por fim, a postagem conclui que o verdadeiro "veículo" que teria prejudicado a escuta de Brahms foi o trem ou a carruagem — pois ele, em turnê, mal dormira na noite anterior. Mas isso equivale a confundir condição individual com condição estrutural. Adorno jamais acusaria o rádio de ser um veneno universal para a música; o que ele denuncia é a integração da arte ao sistema de reprodução capitalista, que rebaixa sua função crítica, reduzindo-a àquilo que ele chama de "pseudocultura".

Concluímos este pequeno ensaio afirmando que a crítica adorniana à escuta pelo rádio deve ser lida em um contexto mais amplo de sua teoria crítica da sociedade. A preocupação de Adorno não é com o rádio enquanto tal (o aparelho tecnológico em si), mas com a formatação da experiência estética promovida pela lógica mercantil. A escuta passiva, fragmentada e desatenta não é um efeito colateral técnico, mas uma consequência de um processo histórico-social mais profundo, no qual a arte perde sua autonomia e sua capacidade de provocar pensamento.

Ironias anedóticas e contraexemplos isolados, como o cochilo de Brahms, não invalidam essa análise — apenas revelam a superficialidade de certas leituras. Adorno permanece atual, especialmente quando nos lembramos de como hoje a música, mais do que nunca, foi transformada em playlist, stream e fundo sonoro. A pergunta que fica, então, não é se o rádio é culpado, mas o quanto nós estamos dispostos a escutar de fato — e a pensar com o que escutamos.

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