Nietzsche para Estressados": A Banalização do Abismo em 99 Pílulas Digestivas

Por Janilson Fialho

I - Resenha

Imagine só: Nietzsche, o pensador que escreveu com sangue, dançou com o caos e contemplou o abismo até que o abismo piscasse de volta, sendo reduzido a um coach motivacional de Instagram. Pois bem, Allan Percy conseguiu esse prodígio editorial em Nietzsche para Estressados — um manual de autoajuda que transforma martelos filosóficos em cotonetes emocionais.

Publicada em 2009, essa obra nos oferece 99 doses de Nietzsche, como se o filósofo fosse um tipo xarope para alma cansada da modernidade. A obra Nietzsche agora serve para... melhorar a autoestima? Para se divertir? Para viver livre de estresse? Parece que sim. Segundo Percy, você vai aprender a “desvendar todo o seu potencial” com o mesmo Nietzsche que escreveu que o homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem — uma corda sobre o abismo (Assim falava Zaratustra). Mas não se preocupe com abismos: agora você pode atravessá-los com frases prontas, em letras cursivas sobre imagens de praia no Pinterest.

Essa mutilação conceitual é mais que irresponsável; é quase uma necrofilia editorial. A filosofia nietzschiana é uma máquina de desconstrução da moral burguesa, da religião confortadora, da racionalidade iluminista e da própria ideia de sentido. Transformá-la em “ensinamentos fáceis e práticos” é praticamente patético. Percy promete ensinar como “cultivar bons relacionamentos” com base em um filósofo que pregava a solidão do ser humano e que desprezava qualquer moral gregária. Ele promete que você vai “viver tranquilo”, e isso é pura idealização, algo que o filósofo usado no livro abomina.

Nietzsche não é um conselheiro de LinkedIn. Ele não está preocupado com seu “autoconhecimento” de cinco minutos nem com suas “metas de vida”. Ele queria que você enfrentasse o niilismo, aceitasse o sofrimento como parte da existência e criasse novos valores mesmo quando tudo parece ruir. Ele não queria que você usasse sua filosofia como analgésico, mas como amputação — da fé, da esperança e da mediocridade.

Enfim, Nietzsche para Estressados é um produto típico da era do conteúdo fast food: digestível, açucarado e absolutamente desprovido de nutrição filosófica. Serve bem para decorar frases de stories, mas ofende qualquer leitor que tenha realmente encarado a Genealogia da Moral, A Origem da Tragédia ou Gaia Ciência. Se Nietzsche soubesse disso, provavelmente não escreveria outro livro.

II - Reflexão

No mundo contemporâneo, a ideia de viver intensamente uma vida autêntica tornou-se não apenas uma aspiração filosófica, mas um imperativo moral vendido em embalagens digitais, cursos de coaching e frases de efeito no Instagram. A autenticidade, outrora um projeto existencial complexo e um valor desejável, virou produto de consumo. A vida intensa não é mais uma escolha ética ou estética, mas uma performance contínua exigida pelo mercado da autoajuda, do empreendedorismo de si e da estética da positividade tóxica.

É mais do que evidente que o estoicismo, por exemplo, virou mercadoria. Essa filosofia antiga, que lidava com a aceitação do destino e com o exercício da razão diante das adversidades, hoje é plastificada por gurus de internet. Transformado em "manual de resiliência emocional", o estoicismo contemporâneo é vendido em frases rasas como “controle o que você pode, ignore o resto”, usadas para justificar alienações emocionais, omissões sociais e inércias políticas.

O sujeito que consome esse "estoicismo fast-food" está menos preocupado em se transformar, mas de manter um verniz de equilíbrio enquanto repete mantras prontos. No fundo, o indivíduo que consome as "10 lições para a vida segundo o estoicismo", não suportaria ouvir que talvez seja um ser viciado em autossabotagem e ressentimento. A filosofia vira escudo para não olhar o próprio abismo.

Esse fenômeno se agrava quando Friedrich Nietzsche entra na equação. No mundo contemporâneo, o pensamento do filósofo alemão foi tragado pelo discurso neoliberal de superação individual e usado como maquiagem conceitual por influencers e coachs. A “vontade de potência”, o “eterno retorno” e o “Übermensch” foram transfigurados em slogans de desenvolvimento pessoal e empreendedorismo emocional.

Viver uma vida intensa, hoje, é uma prescrição higienizada e vendável: é preciso ser potente, produtivo, positivo e único — todos da mesma forma. A reprodução da autenticidade é o grande paradoxo: cada indivíduo deve parecer original seguindo os mesmos padrões ditados pelas redes. O “ser autêntico” virou uniforme.

Nietzsche, com sua crítica à moral do rebanho e ao ressentimento, foi capturado pelo que mais combatia. Sua filosofia, que denunciava os valores decadentes da modernidade e propunha a criação de novos valores, é agora usada como cola existencial para sujeitos fragmentados que querem se sentir especiais sem precisar criar nada realmente novo. A própria ideia de criação foi capturada pela estética da produtividade.

"Temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo." (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, Prólogo, 2012)

Essa afirmação radical da vida, exigente e trágica, foi substituída por uma vida vitaminada com positividade compulsória. A dor não é mais matéria de criação, mas um sintoma a ser imediatamente silenciado com frases de Instagram ou cápsulas motivacionais.

"Ao fazer, deixamos de lado – No fundo, tenho aversão a todas essas morais que dizem: ‘Não faça isto! Renuncie! Supere a si mesmo!’ – mas tenho em boa conta as morais que me impelem a fazer algo e a refazê-lo, e sonhar com ele à noite e em nada pensar senão em fazê-lo bem, tão bem como somente eu posso fazê-lo!" (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, aforismo 304, 2012)

Essa moral do fazer foi transformada em produtividade vazia. “Fazer bem” virou “entregar resultados”; sonhar à noite virou “visualizar o sucesso”. O mercado de bem-estar traduziu Nietzsche em metas SMART.

Nietzsche sonhava com um novo tipo de humano, que criaria novos valores, sem apego aos ressentimentos e fugas metafísicas:

"O übermensch (esse além-do-homem) é, portanto, aquele que destrói velhas tábuas da moral e cria novos valores. Ele tem que transmutar todos os valores que até agora conceberam um tipo humano medíocre, por isso ele opera com aquilo que Nietzsche chama de transvaloração de todos os valores, isto é, atravessar todos os valores medíocres, [...] Valores que não mais criem tipos humanos fracos, vingativos que odeiem este mundo, esta vida, que são ressentidos com relação aos mais fortes, mas tipos que amem esta vida sem a necessidade de recorrerem a uma vida além-túmulo. Tais novos valores devem criar tipos humanos voltados para o além-do-homem, novos tipos humanos que têm um plus, um “a mais” de vida." (SOUSA, 2009, p. 22–23)

Esse “a mais de vida” foi capturado por discursos coach que exigem dos sujeitos uma performance constante de felicidade, superação e autenticidade, numa lógica cruel onde quem não consegue “se reinventar” é descartado como fraco.

O filósofo fala da vontade de Poder: “Apenas onde há vida há também vontade: mas não vontade de vida, e sim – eis o que te ensino – vontade de poder!” (NIETZSCHE, 2011, p. 110). Essa vontade de poder, complexa, ambígua, existencialmente exigente, foi transformada em slogan de academia e mentalidade de vencedor. Hoje, a exigência não é mais a de tornar-se o que se é, mas de parecer, o tempo todo, alguém “melhor” — mais forte, mais feliz, mais original, mais produtivo.

A “vontade de potência” virou mantra de produtividade. O “eterno retorno” foi transfigurado em “curta cada momento como se fosse o último”. A filosofia do trágico virou técnica de mindfulness. Nietzsche virou figurante nas estantes da autoajuda.

O que temos, no fim, é a estetização da autenticidade como fetiche neoliberal. Se outrora Nietzsche acusou o cristianismo de ser um platonismo para o povo, hoje podemos fazer o mesmo tipo de acusação, mas mostrando que hoje o mundo corporativo neoliberal usa as ideias de Nietzsche sobre a afirmação da vida e a criação de valores contra o niilismo como autoajuda para o povo.

"Quem viveria quantas vezes fosse necessário toda a sua vida, e diante de tantos sofrimentos e dissabores, mas também frente a todas as alegrias e prazeres, dizendo um eterno sim à vida como ela é, sem escapes metafísicos?" (SOUSA, 2009, p. 25)

O "sim" à vida que damos hoje sob a inspiração de Nietzsche, isto é, esse "sim" cheio de coragem, criação e confronto com a dor, se alienou a outra metafísica: as redes sociais. O sim a ter um vida intensa foi dado com a finalidade de ele ser espetacularizado. O "sim" que damos com coragem e força é uma encenação midiática. O “sim” contemporâneo é condicionado pelo algoritmo, pelo mercado e pelas métricas de engajamento. Um “sim” que não afirma nada — apenas reproduz.

Referências:

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SOUSA, M. A. Nietzsche: Viver intensamente, tornar-se o que se é. São Paulo: Paulus, 2009.

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