Ensaio: Entre o Sonho e o Progresso: A Crítica de Ailton Krenak à Modernidade
Por Janilson Fialho
Ailton Krenak, um grande pensador indígena, ativista e poeta, nos oferece uma crítica profunda à modernidade a partir de um ponto de vista radicalmente fundamentado na cosmovisão dos povos originários. Em suas obras, Krenak propõe uma análise comparativa entre dois estilos de vida aparentemente inconciliáveis: o dos povos originários e o do homem moderno/pós-moderno. Essa análise não é apenas uma comparação cultural, mas um convite filosófico para repensar os fundamentos do que se entende por humanidade, progresso, educação e vida.
No centro de sua crítica está a percepção de que as pessoas que vivem na civilização moderna estão sob o império de um racionalismo técnico-científico que fundamenta a modernidade. Esse paradigma, segundo Krenak, reduziu a existência a uma sucessão de utilidades, mediada pelo progresso, pelo capitalismo e pela educação instrumental. A educação, nesse modelo, se tornou uma ferramenta de adaptação à lógica produtivista: educa-se para o mercado, para o capital, para o consumo. Como afirma o autor, essa educação não liberta, mas aprisiona: "ela forma sujeitos para atuarem dentro da lógica de destruição do planeta, ou como ele mesmo diz, para 'comer a terra'".
A expressão "comer a terra" carrega uma conotação negativa, metafórica e simbólica. Indica a ação humana devastadora, que em nome do desenvolvimento econômico e do lucro, esgota os recursos naturais e destrói o equilíbrio vital da Terra. Krenak denuncia que esse modelo de civilização está fadado ao colapso, pois coloca o ser humano em oposição à natureza, ao invés de reconhecê-lo como parte dela. A cidade, símbolo da modernidade, é o espaço onde essa separação se intensifica, e o progresso — idealizado como destino inevitável — torna-se justificativa para o extrativismo e a violência.
Em contraposição a isso, Krenak apresenta o estilo de vida dos povos originários como uma alternativa existencial e filosófica. Esse estilo não se baseia na utilidade, mas na ancestralidade, na comunhão e na harmonia com a natureza. A vida, para os Krenak e outros povos indígenas, é um tecido interligado onde todos os seres — humanos e não-humanos (como os rios, montanhas, árvores, por exemplo) — são todos parentes. Como ele escreve: “a vida atravessa tudo”. A vida, nesse contexto, não é apenas biológica, mas espiritual e cósmica: ela é transcendência.
Diferentemente da modernidade, que entende o ser humano como um indivíduo predestinado ao sucesso (ou ao fracasso), os povos originários não possuem essa fixação pelo destino. “Essa ideia de que a humanidade tem um destino é uma bobagem. Nenhum outro animal pensa isso”, afirma Krenak. Os povos indígenas desconfiam da noção de predestinação e rejeitam o ideal de humanidade como algo homogêneo e excludente. A “humanidade”, para Krenak, é um conceito negativo, pois historicamente excluiu povos, saberes e modos de vida que não se encaixam no padrão europeu, cristão, branco e capitalista.
Por isso, o autor propõe deslocar o conceito de “humanidade” e colocar no seu lugar o conceito de “vida”. Enquanto a humanidade é um projeto falho e excludente, a vida é diversa, aberta, intuitiva. Nesse sentido, o sonho — elemento central das culturas originárias — não é apenas uma fantasia noturna, mas uma forma de conhecimento, de pedagogia e de sabedoria. Para os povos originários, o sonho é intuição, é afeto compartilhado, é conexão com o invisível. O sonho educa, guia e cura. Ele é a "casa da sabedoria".
Essa cosmovisão se opõe frontalmente à lógica moderna, que valoriza o pragmatismo e a produtividade. Enquanto o moderno vive em função da utilidade, o indígena valoriza a tradição. Enquanto o progresso corre para o futuro, os povos originários se voltam para a ancestralidade. E enquanto a modernidade separa o ser humano da natureza, os povos originários reconhecem que “a vida está conectada a tudo”. Essa visão relacional, holística e espiritual da existência é uma crítica radical ao individualismo contemporâneo do “salve-se quem puder”.
A comparação proposta por Krenak, portanto, não é apenas cultural, mas ontológica. Ela coloca em questão o próprio conceito de ser humano, propondo uma abertura ao que ele chama de “descolonização do pensamento”. Nesse movimento, o sonho se contrapõe ao cálculo, a floresta à cidade, a comunidade ao indivíduo, a vida à humanidade. Krenak nos convida a adiar o fim do mundo não com grandes soluções tecnológicas, mas com um retorno ao simples, ao afetivo, ao coletivo. A sabedoria dos povos originários, muitas vezes ignorada ou ridicularizada, pode ser exatamente aquilo que falta para que reencontremos um sentido menos destrutivo de viver.
Contudo, em um tempo em que o planeta agoniza e as promessas da civilização se mostram cada vez mais vazias, as ideias de Krenak oferecem não apenas uma crítica, mas uma esperança. Uma esperança que sonha — não como fuga, mas como ensinamento — e que entende que “a vida não é útil”, porque é, acima de tudo, sagrada.
Referências:
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
______________. Antes o mundo não existia. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
______________. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
______________. Quando o povo indígena descobriu o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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