A Dialética do Senhor e do Escravo em “Um Barco e Nove Destinos” de Hitchcock

Por Janilson Fialho

O mestre do suspense, Alfred Hitchcock, apresenta em Um Barco e Nove Destinos (1944) mais do que um filme de guerra: oferece uma alegoria ética profunda, onde a dialética hegeliana do senhor e do escravo se encena em meio ao mar aberto. No bote salva-vidas que abriga os sobreviventes de um navio afundado por um torpedo nazista, sete náufragos aliados — pessoas comuns, com diferentes origens e convicções — precisam conviver com um inimigo declarado: um oficial alemão. A escolha de Hitchcock não é acidental. É uma provocação: o que acontece quando o inimigo se torna necessário?

O filme se inicia no caos: destroços boiam em um mar enevoado, um corpo à deriva indica a morte silenciosa, e a câmera nos lança ao cenário principal — um bote, flutuando entre a sobrevivência e o colapso moral. Logo, os personagens descobrem que foram atacados pelos nazistas. A tensão cresce quando um novo náufrago se aproxima: um alemão, um inimigo. Eles o acolhem, mas com desconfiança. A presença dele introduz um dilema ético que se aprofundará durante toda a trama.

Hitchcock resume o cerne da situação com uma ideia intrigante: O inimigo escraviza aquele a quem precisa. Essa proposição reflete, com precisão, a estrutura da dialética do senhor e do escravo apresentada por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito. Para Hegel, o senhor domina, mas sua identidade depende do reconhecimento do escravo — ele precisa ser reconhecido como senhor para sê-lo. Já o escravo, pela prática e pelo trabalho, ele pode desenvolver a consciência de si, e sua experiência o transforma. Com o tempo, aquele que servia ganha domínio sobre o mundo material, e o senhor, dependente da ação do outro, se fragiliza.

Essa inversão aparece de forma clara no filme. Os aliados desejam, em muitos momentos, eliminar o alemão, pois o veem como ameaça, como inimigo ideológico. Mas há uma força contrária: a dependência. O oficial nazista, com seu conhecimento de navegação, com sua força física, com sua frieza estratégica, revela-se indispensável à sobrevivência de todos. É ele quem sabe remar com eficiência, quem guia o grupo pelo oceano sem horizonte. É o escravo que comanda o destino. E ele sabe disso.

Há uma cena emblemática na qual o nazista expõe com frieza a verdade que os demais tentam ignorar: "Nenhum de vocês me matará, porque dependem de mim!". A brutalidade dessa fala não está apenas em sua arrogância, mas na sua veracidade. O que fazer quando a mão que carrega o remo é também a mão que poderia ter disparado o torpedo? Os personagens oscilam entre o desejo de justiça (ou vingança) e o impulso de sobrevivência. Aqui se encena o dilema ético central do filme: o que é mais importante — os princípios ou a vida?

A moral do senhor, que age com base em sua autoridade e poder, começa a ruir. Os aliados, que deveriam ser os donos da decisão, percebem-se reféns de suas próprias limitações. O nazista, o suposto submisso, transforma-se no motor do movimento, no organizador do caos. A cada remada, inverte-se a lógica da dominação. O senhor depende do escravo — e isso desestabiliza toda a ordem simbólica que os personagens (e o espectador) tinham como certa.

Contudo, Hitchcock não oferece um final conciliador. Quando o grupo decide linchar o alemão, a câmera se afasta, mostrando-os de costas, como animais em ataque. É um momento de suspensão moral: os democratas matam o inimigo, mas o fazem como bárbaros. Não é um ato de justiça, é um impulso de medo e desespero. O escravo tornou-se senhor — e foi destruído por isso. A violência se revela como fundo comum, seja na ideologia fascista ou nas entranhas da sobrevivência humana.

Em alto-mar, a ética não encontra terra firme. O bote é o lugar da ambiguidade, da fragilidade da moral e da reversibilidade do poder. Um Barco e Nove Destinos mostra que, sob pressão, os papéis se invertem, os senhores se fragilizam e os escravos encontram poder. A dialética hegeliana ganha corpo em cada gesto, em cada remada, em cada silêncio. Hitchcock não apenas narra um drama de guerra — ele filosofa com a câmera, expondo a tensão entre necessidade e convicção, poder e servidão, humanidade e barbárie.

No fim, resta a pergunta: quem realmente venceu naquela jangada? E o que significa vencer quando se depende de quem se odeia para continuar vivo? O filme, como a dialética, não oferece respostas fáceis — apenas nos arrasta para mais fundo nas águas turvas da consciência.

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