Um Artista da Fome: entre a vontade como essência e o desejo como dor
Um Artista da Fome: entre a vontade como essência e o desejo como dor
Por Janilson Fialho
No conto Um Artista da Fome, Franz Kafka traça com maestria a trajetória de um homem que jejua não por virtude religiosa, vaidade estética ou vaidade pública, mas por uma ausência mais profunda: a de um desejo que não encontra objeto. No clímax da narrativa, o artista confessa, já à beira da morte: “porque nunca encontrei uma comida que me agradasse”. Essa frase, aparentemente simples, carrega uma dimensão filosófica inquietante que toca o âmago da existência humana. O artista da fome não é apenas alguém que não come — é alguém que não deseja comer. Ou melhor: que deseja o que não sabe o que é.
A partir dessa figura trágica, este ensaio busca refletir sobre dois grandes eixos filosóficos que estruturam a experiência do desejo: a vontade como essência do mundo, segundo Arthur Schopenhauer, e a falta como constitutiva do sujeito do desejo, segundo Jacques Lacan. O sofrimento do artista não é apenas físico, mas metafísico. Ele expressa a dor de desejar sem jamais alcançar o objeto desejado — ou, como propõe Lacan, de desejar aquilo que não tem representação possível. Sua arte é a arte da renúncia, sua performance é a encarnação de uma dor ontológica.
Para Arthur Schopenhauer, o mundo é a manifestação de uma única força irracional: a vontade. Esta não deve ser confundida com a vontade consciente, racional ou deliberada do indivíduo, mas entendida como a força que se afirma na natureza inteira, desde o cristal até o homem. Deste modo, toda forma de vida é expressão dessa vontade, que é insaciável, cega e autopropulsora. Como também, a vontade é uma essência autodiscordante, um querer que nunca chega ao fim.
O artista da fome, ao declarar que jejua não por virtude, mas por falta de apetite verdadeiro, encarna precisamente essa ideia. Ele representa aquele em que a vontade se manifesta como negação radical: deseja desejar, mas não consegue. A sua fome não é pela comida, mas por algo que o mundo não pode oferecer. Por isso, a ausência de alimento não é privação, mas condição existencial.
O sofrimento, na filosofia de Schopenhauer, é inevitável, porque toda vontade é, em si, sofrimento. Porque querer é carecer, é carência, é dor. A vida, nessa perspectiva pessimista, oscila entre o sofrimento da necessidade e o tédio da saciedade. O artista da fome encarna o primeiro (o sofrimento da necessidade). Incapaz de encontrar prazer na alimentação, ele transforma sua privação em espetáculo, mas sem jamais alcançar sentido nisso.
Durante o auge de sua carreira, Kafka narra que dia após dia de seu jejum a excitação aumentava; todos queriam vê-lo pelo menos uma vez por dia. No entanto, nem a glória pública o consola. O artista está só. Está honrado pelo mundo, mas perturbado em espírito, seu sofrimento não é compreendido por ninguém. Nem mesmo por ele próprio.
A vontade, sendo cega, jamais se satisfaz. Uma das passagens mais conhecidas de "As Dores do Mundo", de Schopenhauer, ilustra essa lógica:“A vida do homem oscila, como um pêndulo, entre a dor e o tédio, tais são na realidade os seus últimos elementos. Os homens tiveram que exprimir esta ideia de um modo singular; depois de haverem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e todos os sofrimentos, que ficou para o céu? Justamente o aborrecimento!”. Quando temos um desejo, sofremos pela sua não realização; quando o realizamos, caímos no vazio e na repetição. A satisfação mata o desejo, mas não a vontade. Por isso, a vida é sofrimento contínuo.
Kafka explora essa dinâmica ao narrar a decadência do artista. Com o tempo, o público se desinteressa, o jejum deixa de ser atração. O artista continua jejuando mesmo quando ninguém o observa: “o entusiasmo pela arte do jejum havia decaído. Antigamente, toda a cidade participava do espetáculo; agora, ele passava despercebido”. Sem desejo externo (o olhar do outro), sua prática revela-se insustentável — mas ele continua, movido por uma vontade sem fim.
Sua existência torna-se absurda, até que é esquecido, substituído por uma pantera cheia de vitalidade, que come com prazer: “a pantera não sentia falta de nada. A comida a agradava”. Aqui, Kafka opõe duas vontades: a vontade negativa do artista, que jejua por não encontrar nada digno de desejo, e a vontade afirmativa do animal, que goza o mundo sem questionamento. A pantera é a própria força vital — o artista, sua negação trágica.
Jacques Lacan oferece uma outra chave de leitura interessante ao conceber o desejo como estruturado pela falta. Para o psicanalista francês, o desejo não é desejo por algo específico, mas por quilo que está ausente, por algo que nunca esteve lá. Ele nomeia esse vazio de “objeto a” — o objeto causa do desejo, mas que jamais pode ser possuído.
O artista da fome deseja algo que não existe. A comida concreta não o interessa; o reconhecimento do público o aborrece; a fama o cansa. Sua frase final — “porque nunca encontrei comida que me agradasse” — pode ser lida como um eco lacaniano: a ausência do objeto a que o levaria à plenitude. Mas essa plenitude é impossível. O sujeito do desejo está sempre em busca de algo que falta por estrutura.
Lacan também afirma que o desejo é o desejo do Outro. Desejamos ser desejados, reconhecidos, significados. O artista da fome, ao transformar seu corpo em espetáculo, tenta captar o olhar do Outro — o olhar social — como forma de encontrar sentido. Mas falha. Seu sofrimento é solitário. Como diz Kafka: “ninguém podia entender o artista da fome, ninguém”.
Kafka transforma o sofrimento privado em espetáculo público. O artista se apresenta numa gaiola, como um animal, mas sua dor é invisível. O público o observa com curiosidade, mas não com empatia. “Alguns riam, outros ficavam em silêncio, mas ninguém sabia o que pensar”. A arte do jejum não comunica. Ela isola.
O artista da fome está preso entre a vontade que o move e o desejo que nunca se realiza. Ele não jejua por disciplina, mas por destino. “Tenho que jejuar, não posso evitar”. Sua liberdade é apenas aparente. Como o sujeito de Schopenhauer, ele é dominado por uma força interna que não compreende — a vontade, que o empurra à destruição.
Kafka, como Schopenhauer, é um pensador do pessimismo. Seu artista morre esquecido, de forma miserável, e é enterrado com pressa para dar espaço a um animal. A arte, a fome, o sacrifício: tudo é inútil diante da indiferença do mundo.
Um artista da fome é uma parábola sobre o desejo humano em sua forma mais radical: aquele desejo que não se sabe o que quer, que não encontra objeto, que consome o sujeito desde dentro. A partir de Schopenhauer, entendemos essa fome como manifestação da vontade — uma essência cega, insaciável, fonte de dor. Com Lacan, compreendemos o vazio do artista como estrutural: o desejo é desejo de algo que falta, e que, por faltar, nunca se resolve.
Kafka escreve, com ironia e compaixão, sobre a condição trágica do homem moderno. Seu artista é mártir da subjetividade, prisioneiro de um desejo que o mundo não pode nomear. Ao jejuar até a morte, ele não apenas rejeita o alimento, mas confessa: o que falta em mim não está no mundo. E, por isso, continuo a desejar.
Referências
KAFKA, Franz. Um artista da fome. Tradução de Rafael Palma. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&opi=89978449&url=https://rfp.org.uk/textos/conto_kafka_artista_da_fome.pdf&ved=2ahUKEwib3oOQiqiNAxXQr5UCHeagFTUQFnoECHgQAQ&usg=AOvVaw1xJ8qlPVJvwRwbyrDpfisZ. Acesso em: 15 maio 2025.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do Mundo: A Metafísica do Amor, a Arte, a Moral, o Homem e a Sociedade. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo: L&PM, 2005.
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