Pequeno Ensaio Filosófico: Entre a Crise e a Polêmica Contra o Nada (I, §3)
Livro I
§3 - Do ter em si muito do que não se quer ser para o que é necessário ter em si para se querer continuar sendo o que se é
Eis a máxima que conduzirá nossa reflexão: "É necessário ter em si muito do que não se quer ser."
Essa bela sentença revela algo do meu íntimo; ela expressa, com rara precisão, minhas preferências e meus desafetos. Por exemplo, embora eu discorde de Martin Heidegger quanto à finitude que ele atribui ao Ser, ainda assim admiro sua filosofia, leio seus escritos e incorporo ao meu vocabulário muitos de seus conceitos. O semelhante atrai o semelhante.
Tenho inúmeras discordâncias, sobretudo com certos pensadores que ousam generalizar suas teses como verdades universais. Veja que pretensão absurda: condensar toda a complexidade da realidade em um único livro. Ao fazer isso, impõe-se um limite à potência e ao devir criador, submetendo-os a meros sistemas — filosóficos, sociológicos, antropológicos ou científicos. Pergunto: com que direito? Ainda temos, de fato, autoridade suficiente para propor uma generalização metafísica sobre o real?
Ora, será que ainda não percebemos que a realidade é demasiadamente complexa para ser representada em sua totalidade? A extensão da essência da realidade — do tempo, do devir, da própria natureza, da existência, e assim por diante — é incomensurável se comparada à finitude humana. Em outras palavras, tudo aquilo que está fora do ser humano constitui um desafio ao nosso entendimento. Assim, qualquer discurso supostamente formidável sobre o que está além de nós não passa de um recorte: uma perspectiva ínfima que busca racionalizar e esgotar os mistérios do mundo. E essa pretensão é, muitas vezes, movida por um ego inflado, embriagado por um senso de grandiosidade. É o desejo de tornar-se o porta-voz do universo.
Tais pensadores deveriam ser mais sinceros — e humildes — em ao menos uma coisa: admitir, tal como Platão afirma em A República acerca dos poetas, que não são mais do que "praticantes da poesia", imitadores que produzem simulacros de virtude. No caso dos filósofos, esses se igualam aos poetas na arrogância de pretenderem condensar o real em uma narrativa discursiva, à qual chamam "ideia".
A metafísica moderna revelou a realidade como a força interior do eu criador do mundo. A partir disso, os filósofos tornaram-se artífices de sombras, forjadores de aparências. A representação passou a ser a essência de seus discursos, os quais operam como sistemas de supressão do mistério. A definição — e sempre ela — foi erigida como o método de esvaziamento da sensação diante do mundo. Ainda assim, não há alternativa na natureza do pensador, pois essa é precisamente a ética que o constitui: o hábito de imitar a si mesmo é a raiz das ideias que se lançam ao mundo como conceitos que pretendem definir a realidade. Tal é a ação do pensador para provar a própria existência: penso, logo existo.
Não há dialética em uma razão sem um corpo. O desprezo de um é o alimento do desprezo reativo da outra. Essa perspectiva radicalmente oposta não me parece tão sensata — mesmo que nela houve grandes pensadores que advogasse em sua defesa. Não quero ter em mim o conflito dualista. Sei que há uma alma e um corpo — defendo essa ideia —, mas enquanto eu sou um ente vivente, terei a alma ligada ao corpo.
No entanto, não sou tão diferente desses construtores de sistemas de pensamento que chamamos de filósofos. Também sou um artífice que busca criar conceitos, que almeja dar um sentido essencial aos entes do mundo. Não há como fugir desse destino intelectual.
Ora, eu afirmei anteriormente que é necessário "ter em si muito do que não se quer ser". Mas agora proponho outro desdobramento dessa máxima: uma perspectiva não mais negativa. Pergunto, então: o que é necessário ter em si para se querer continuar sendo o que se é?
Sigo aqui — ainda que não totalmente — uma máxima do poeta Píndaro, mas popularizada na filosofia de Friedrich Nietzsche: "Torna-te quem tu és." Essa proposição, fundada agora na transvaloração dos valores, aponta para a possibilidade de o indivíduo — e tão somente esse indivíduo — escolher seus próprios fundamentos, ou melhor, assumir sua potência. Para Nietzsche, encontrar um modo de vida autêntico e singular é uma condição necessária para o aumento das forças vitais.
O sujeito deve encontrar sua autenticidade sozinho, afinal, a sociedade (a massa, o rebanho, etc.) limita a sua potência criadora. Nietzsche glorifica em sua filosofia a figura do solitário como aquele que não precisa dos valores dos outros, porque ele sabe o seu próprio valor.
No entanto, afirmo que essa noção de romper com as correntes — na esperança de que o sujeito não tenha outro senhor senão a si mesmo — pode ser ilusória. Sem o devido cuidado, essa postura pode conduzir o indivíduo a um isolamento egoísta, desconectando-o do mundo. A vontade de potência, quando destituída de laço com o outro, age segundo os versos íntimos do mais sombrio dos poetas brasileiros, o paraibano conhecido por seus conterrâneos como “Doutor Tristeza”:
"[...] O homem, que, nesta terra miserável, / Mora, entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera."
O homem solitário, apartado do laço social, torna-se um alienado de seu meio, incapaz de convivência. O homem torna-se lobo do próprio homem.
Dessa forma, defendo que o individualismo é necessário — afinal, esse é o desafio: tornar-me quem sou. No entanto, só sou quem sou quando o outro me serve de contraste, de espelho e de desafio — e não só como oposição, mas sua colaboração é essencial. O outro é, portanto, mais importante para mim do que meu próprio egoísmo. Minha existência só se realiza na convivência com os outros. E essa dinâmica permeia tudo o que há — tanto no bem quanto no mal.
Por Janilson Fialho, XIX. V. MMXXV
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