A Psicopatologia do Poder: Violência, Masculinidade e Subjugação em Coringa 2

A Psicopatologia do Poder: Violência, Masculinidade e Subjugação em Coringa 2

Por Janilson Fialho

O cinema, como espelho das pulsões e contradições sociais, frequentemente revela mais sobre a sociedade do que sobre os próprios personagens que retrata. No caso de Coringa 2, do diretor Todd Phillips, o arco de Arthur Fleck atravessa uma metamorfose simbólica que, embora tente parecer crítica, acaba reproduzindo as estruturas de poder que diz combater.

Podemos dizer que a violência que Arthur enfrenta nesse momento da história acaba gerando nele uma certa dose de "humildade" que o faz recuar de seu papel como Coringa. O filme tinha a pretensão de combater a masculinidade de tóxica que se apropriou no personagem como símbolo. No entanto, essa crítica é apresentada de maneira que faz parecer que o filme defende a ideia de que "se você se considera um machão, basta ser estuprado — ou ser violentado de outra forma — e você volta ao seu lugar". Essa mensagem é problemática e, ironicamente, um filme que supostamente busca combater um discurso masculinista acaba encontrando como alternativa crítica uma visão ainda mais masculinista.

Essa leitura se complica quando lembramos que o filme poderia estar justamente tentando criticar essa lógica de poder do machismo. Contudo, ao escolher representar essa queda através de uma subjugação que beira o sadismo, o filme desliza para o terreno da pedagogia violenta como solução. O problema é que esse tipo de narrativa pode voltar a ser facilmente absorvido por discursos masculinistas autoritários que controlam a sociedade.

A ideia de que um indivíduo, seja homem ou mulher, ou qualquer outro indivíduo, só se coloca em seu devido lugar quando é subjugado de modo violento é alarmante. Não é raro ouvir figuras políticas, como Jair Bolsonaro, por exemplo, fazer declarações do tipo: "Se o filho começa a ficar assim, meio gayzinho, [ele] leva um couro e muda o comportamento dele". Esse tipo de frase é recorrente na trajetória discursiva do ex-presidente, marcada por uma retórica que naturaliza a violência como método de correção e reforço da ordem patriarcal.

Esse tipo de ideologia — violenta, normatizadora e regressiva — faz parte do que Pierre Bourdieu chama de “violência simbólica”, ou seja, formas de dominação que operam de maneira invisível, como se fossem naturais e legítimas (BOURDIEU, 1999). A proposta do filme de apresentar a decadência de Arthur Fleck como algo pedagógico, ou até justo, sugere que a punição não só restaura a ordem, mas que ela deve ser aceita como elemento legítimo.

Há uma ambiguidade cruel no modo como o filme constrói essa queda. Pode-se argumentar que ele quer criticar o arquétipo do "redpill", do homem que acredita ter despertado para uma verdade sobre a opressão masculina e a decadência da sociedade feminilizada. Contudo, ao expor Arthur à violência extrema, o longa corre o risco de reforçar a ideia de que o verdadeiro homem é aquele que resiste ou revida — não aquele que se transforma. O discurso do ressentimento masculino, que Susan Faludi (1999) tão bem analisou, se alimenta exatamente dessa imagem: o homem moderno como vítima, emasculado por um mundo onde a sensibilidade virou fraqueza e a autoridade virou piada.

Ao contrário da crítica esperada, ou seja, a crítica contra a masculinidade tóxica, o filme parece consolidar a ideia de que a única forma de existir no mundo é através de uma imposição mais viril. Neste contexto, o fracasso deixa de ser apenas social — torna-se moral. Arthur fracassa como homem não apenas porque perde poder, mas porque deixa de performar a masculinidade exigida: não é mais temido, não é mais temível, e por isso, é descartado. E ele é descartado por quem? Pela seita que cultua a imagem idealizada do Coringa.

Reforçamos o fato de que o filme tinha a intenção de desconstruir a narrativa redpill e mostrar que Arthur Fleck, na verdade, nunca foi essa figura grandiosa que tanto idealizaram. No entanto, a narrativa do filme acaba por endossar um discurso problemático: a tentativa de diminuir o personagem de Arthur através de uma série humilhações e de uma violência extrema; mas, o efeito disso foi o contrário, o filme continuou sendo um ícone para aqueles que afirmam que os homens não conseguem alcançar o topo devido à emasculação causada por diversos fatores, como a o Estado, a mídia e o feminismo.

Se o primeiro filme do Coringa foi apropriado por discursos misóginos e masculinistas como um grito de revolta do “homem oprimido”, o segundo se torna, ironicamente, a validação desse ressentimento. A diferença é que agora não há mais ambiguidade: Arthur Fleck não é mais herói nem vilão — é um exemplo. A mensagem que sobra é sombria: no jogo do poder contemporâneo, só resta ao sujeito perder ou se tornar mais violento do que seus opressores. Como Foucault advertiu em Vigiar e Punir, o poder não desaparece: ele apenas muda de forma, de corpo, de máscara.

Por fim, podemos sintetizar que enquanto o primeiro filme pode ter gerado incômodo, pois foi apropriado como um símbolo da violência masculina, o segundo parece validar essa ideia e também a ideia de que apenas aqueles que cometem maior violência detêm o poder. A diferença é que, enquanto o primeiro abordava a ascensão de Arthur Fleck, o segundo retrata sua decadência. Os homens fortes que Arthur representava no primeiro filme agora são substituídos por figuras de autoridade, como policiais e a elite econômica-política, sublinhando a noção de que a produção de alguma realização no mundo contemporâneo só é viável através de uma afirmação viril de força, refletida na última cena em que o futuro verdadeiro Coringa elimina Arthur Fleck.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

FOLHA DE S.PAULO. Câmara: Palmada muda filho "gayzinho", declara deputado federal. Folha de S.Paulo, São Paulo, 26 nov. 2010. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2611201025.htm. Acesso em: 16 maio 2025.

FALUDI, Susan. Stiffed: The Betrayal of the American Man. New York: William Morrow and Company, 1999.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.

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