A Nostalgia de Dom Quixote como Reflexo da Sociedade Consumista Atual: Um Ensaio Filosófico

A Nostalgia de Dom Quixote como Reflexo da Sociedade Consumista Atual: Um Ensaio Filosófico

Por Janilson Fialho

Vivemos tempos curiosos. Tempos em que o passado retorna não como lembrança, mas como mercadoria. Não se trata apenas de recordar, mas de consumir a memória. Nessa dinâmica, encontramos uma das manifestações mais sofisticadas e, ao mesmo tempo, mais sintomáticas de nossa era: o mercado da nostalgia. É curioso pensar que aquilo que, em outros tempos, era considerado uma afecção melancólica da alma — uma saudade que feria — hoje se transformou em estratégia de marketing, em estética vendável, em produto de consumo. E o que mais chama atenção nesse cenário não é apenas o fenômeno em si, mas a figura que parece antecipar essa condição com inquietante precisão: Dom Quixote de La Mancha.

A monumental obra de Miguel de Cervantes (1547-1616), publicada em 1605 e 1615, constitui mais do que um romance satírico sobre os romances de cavalaria; ela é uma leitura necessária para compreender a condição do sujeito moderno, especialmente o sujeito nostálgico. Antes mesmo de o médico suíço Johannes Hofer cunhar, em 1688, o termo “nostalgia” — do grego nóstos (regresso) e álgos (dor) — já tínhamos em Dom Quixote um exemplo emblemático de como a saudade do passado pode alterar profundamente o modo de se estar no mundo. Quixote é o nostálgico por excelência: alguém que sofre por um tempo perdido e que, para lidar com essa dor, mergulha em fantasias e narrativas idealizadas.

Dom Quixote não apenas recorda o passado dos cavaleiros andantes — ele o consome. Sua leitura obsessiva dos romances de cavalaria o transporta a um mundo idealizado, onde honra, bravura e moralidade eram, ao menos na ficção, valores absolutos. Esse consumo de narrativas "ultrapassadas" tem um efeito devastador: ele reconfigura a realidade à imagem da fantasia. Os moinhos de vento tornam-se gigantes, as estalagens transformam-se em castelos, e prostitutas são damas nobres. A mente de Quixote é moldada pelo passado idealizado. Não seria exatamente isso que vemos hoje, ainda que com roupagens distintas?

A nostalgia contemporânea, ao contrário da experiência individual de um homem em conflito com sua época, se transformou em fenômeno de massas. A diferença crucial está na mediação do capitalismo: a saudade, antes íntima e silenciosa, agora é vendida em HD, em streaming, em reboots, remakes e em embalagens colecionáveis. A indústria cultural, como diria Adorno e Horkheimer (2006), reduz a arte — e agora também a memória — à sua função mercadológica. O “mercado da nostalgia” é, nesse sentido, uma das formas mais avançadas da ideologia, pois promete ao sujeito não apenas entretenimento, mas um retorno emocional à sua infância, ao seu tempo de inocência, ao “lar” simbólico perdido.

Mas há algo perverso nesse retorno. Não se trata de revisitar o passado para compreendê-lo, mas para permanecer nele. Trata-se de uma recusa inconsciente de crescer. O sujeito contemporâneo, à semelhança de Dom Quixote (e por causa disso prefiro chamá-lo de "Sujeito-quixotesco"), rejeita o presente por considerá-lo vazio, caótico ou desencantado, e se refugia no passado estetizado. Porém, diferente do personagem cervantino, o sujeito atual não cria seu mundo nostálgico por meio da leitura crítica, mas o adquire pronto, embalado e mercantilizado. A fantasia deixou de ser invenção e passou a ser franquia.

Filmes de super-heróis, séries com estética dos anos 80, brinquedos relançados para adultos e jogos que imitam o pixelado dos antigos videogames são todos exemplos do “capitalismo nostálgico” que infantiliza o sujeito adulto. Este adulto infantilizado é aquele que, como colocou anteriormente, delira com o retorno de um ator à sua franquia favorita, e acredita, ingenuamente, que se trata de um gesto de afeto e respeito, ignorando a engrenagem mercadológica que move essas decisões. Este sujeito-quixotesco se torna, como o próprio Dom Quixote, uma “triste figura”, não por sua loucura romântica, mas por sua abdicação da maturidade crítica.

Aqui, a psicanálise pode nos oferecer uma chave complementar. O desejo infantilizado do adulto contemporâneo reflete o que Lacan chamou de “fantasia fundamental”: uma estrutura inconsciente que organiza o desejo e sustenta o sujeito diante do Real. A fantasia nostálgica serve como barreira contra a angústia de um mundo em crise. Recorrer ao passado — ou ao simulacro do passado — é um modo de escapar do presente, da falta, do vazio. Contudo, essa fantasia, quando capturada pela lógica mercadológica, torna-se uma caricatura. O adulto, que deveria assumir o peso simbólico da castração — da falta constitutiva —, se recusa a fazê-lo. Prefere ser o menino mimado pelo consumo.

É por isso que os produtos nostálgicos do presente, ainda que voltados ao público adulto, têm o conteúdo simbólico de uma infância congelada. Não infância como potência criativa, mas como repetição e regressão. A violência estilizada e a sexualidade gratuita, vendidas como marcas de “maturidade”, revelam, na verdade, uma superficialidade emocional que se expressa na recusa de lidar com a complexidade da vida adulta. Um filme de super-heróis com classificação +18, nesse contexto, pode ser tão infantil quanto um desenho animado.

A crítica que fazemos aqui sobre a estrutura do “mercado da nostalgia” tem como apontar que este fenômeno é originariamente norte-americano, afinal, é bastante evidente que a realidade atual dos EUA está passando por um momento reacionário, basta olhar para o cenário social e político de lá. A obsessão pelo passado glorioso — Make America Great Again — é o combustível de uma política reacionária que vê no futuro uma ameaça. O presente, repleto de crises, desigualdades e transformações, é evitado. O futuro, incerto, é temido. Resta o passado, seguro, idealizado, reconstruído artificialmente como refúgio. E como toda ideologia, essa construção do passado como lugar utópico cumpre a função de mascarar os conflitos reais da história.

Esse delírio nostálgico da América do Norte, importado com entusiasmo pelo Brasil, encontra solo fértil em uma cultura também marcada por crises identitárias. A produção dos filmes O Auto da Compadecida 2 e Ó Pai, Ó 2 revela não apenas a ausência de investimento em novas narrativas, mas uma repetição ritualística de fórmulas já testadas — uma tentativa desesperada de repetir o sucesso do passado, sem compreender que o contexto histórico mudou. Trata-se de um culto ao passado que não apenas impede a invenção do novo, mas que alimenta a crença de que o novo é perigoso, ruim, difícil ou inviável.

O perigo disso tudo não é apenas estético. É político. A nostalgia, quando convertida em ideologia, torna-se uma ferramenta poderosa para manipulação de massas. O saudosismo, quando promovido como valor absoluto, abre espaço para o autoritarismo. Afinal, se o passado era “melhor”, então qualquer tentativa de mudança deve ser contida. A fantasia nostálgica legitima o retrocesso e mascara a opressão. O fascismo, como bem alertaram Walter Benjamin e Umberto Eco, se alimenta da estética da nostalgia, da ideia de uma ordem perdida que precisa ser restaurada.

No fim das contas, Sansão Carrasco pode ter vencido fisicamente Dom Quixote, mas sua racionalidade cínica não conseguiu apagar o desejo humano por encantamento. O problema não está em desejar o passado, mas em se deixar capturar por ele como se fosse um absoluto. O Quixote contemporâneo, diferente do personagem cervantino, não sonha — consome. E nesse consumo, ele não apenas se aliena, mas se reduz a uma engrenagem de um sistema que lucra com sua saudade.

A única saída possível, talvez, seja recuperar o espírito crítico do próprio Quixote, mas sem sua ingenuidade. Precisamos de uma nostalgia consciente, que seja capaz de lembrar sem repetir, de honrar o passado sem rejeitar o presente, e de imaginar o futuro com coragem. Pois, como escreveu Nietzsche em Humano, Demasiado Humano, “o futuro influencia o presente tanto quanto o passado”. E talvez seja essa a tarefa da filosofia hoje: despertar o Quixote que sonha, mas também lembrar-lhe que moinhos de vento são apenas moinhos — e que é no real, e não na fantasia, que se constroem os caminhos da liberdade.

Referências:

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CERVANTES, Miguel de. O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. [Tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo]. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

ECO, Umberto. O Fascismo Eterno. São Paulo: Record, 2019.

HOFER, Johannes. Dissertatio Medica de Nostalgia. 1688.

LACAN, Jacques. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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