O Mito Moderno Sobre a Idade Média
O Mito Moderno Sobre a Idade Média
Por Janilson Fialho
É muito comum pensarmos que a Idade Média, o período que compreende aproximadamente do século V ao XV, esteve calcada exclusivamente no pensamento teocêntrico — Deus no centro do mundo —, ou melhor, de que o mundo medieval esteve completamente sob a égide dominante do cristianismo. O filósofo Immanuel Kant, por exemplo, caracteriza todo este período como sendo tomado pela menoridade intelectual. Ele alega que a Idade Média é o período de predomínio do pensamento católico cristão, e que por isso os indivíduos eram dependentes e guiados pelos dogmas e pela fé.
Só podemos discordar dessa afirmação de Kant se primeiro pudermos responder duas questões fundamentais: 1⁰) Existe uma Idade Média? 2⁰) Existe realmente um pensamento filosófico na Idade Média? A fim de dar conta de tais questões, precisamos olhar com mais atenção para esse período histórico tão complexo que denominamos, talvez um tanto arbitrariamente, de "Idade Média". Terá sido, de fato, um período tão marcado por acontecimentos assombrosos? Não há como negar que muita coisa ruim aconteceu naqueles tempos, mas só foi apenas esse período que foi afligido por mazelas? Por acaso esses males não acontecem, de uma certa forma, até nossos dias? Por que, então, só a Idade Média é vista como a "Idade das Trevas"?
A visão que temos hoje do medievo é totalmente descabível, simplista e cheia do viés ideológico de seu momento histórico. Podemos dizer que o renascimento propagou um reducionismo sociológico absurdo, porque os pensadores da modernidade apartaram os fenômenos complexos dessa época em partes mais simples, ou seja, jogaram fora as contribuições importantes ao pensamento e a diversidade cultural para o estereotipo da "Idade das Trevas" ou a "longa noite de mil anos".
Portanto, temos uma visão negativa alegando que tal época histórica vivia na sombra da ignorância, superstição, pestes e perseguições religiosas, mas, tais vicissitudes não se fizeram presentes, igualmente, em outros períodos históricos? Deste modo, o reducionismo e os demais preconceitos sobre o medievo foram uma criação da modernidade, obtendo como resultado o apagamento das contribuições positivas. Assim tivemos a formação de nosso imaginário de que a Idade Média é a "Idade das Trevas" e que por sê-la não teve ou contribuiu com nenhum desenvolvimento na civilização.
Entretanto, hoje os preconceitos da Modernidade sobre a Idade Média estão sendo revistos por filósofos, antropólogos e historiadores que se dedicam a pesquisar sobre essa época. Por exemplo, o pensador Alain de Libera diz o seguinte em sua obra "A Filosofia Medieval":
"A primeira coisa que um estudante deve aprender ao abordar a Idade Média é que a Idade Média não existe. A duração contínua, o referencial único em que o historiador da filosofia inscreve a sucessão das doutrinas e das trajetórias individuais que, a seus olhos, compõem uma história, a 'história da filosofia medieval', não existem. São várias as durações: uma duração latina, uma grega, uma árabo-muçulmana, uma judaica." (DE LIBERA, 2004, p. 7).
O livro de Libera apresenta outra imagem do medievo, principalmente de sua filosofia, sendo ela: Plural, descentrada e multicultura.
A Idade Média, para além de sua imagem ocidental bastante tradicional, trouxe contribuições significativas para o desenvolvimento humano em diversas regiões do mundo. No campo da filosofia oriental, pensadores islâmicos, como Averróis e Avicena, preservaram e expandiram o conhecimento grego. Na Ásia, impérios como o Mongol facilitaram a troca de ideias e culturas, impulsionando avanços em ciência, tecnologia e comércio. Mas para não deixarmos o ocidente tão de fora, devemos dizer que arquitetura gótica e as inovações na construção de catedrais na Europa, por exemplo, refletiram um refinamento estético e técnico.
Em várias partes do mundo, a Idade Média também testemunhou o surgimento de universidades e centros de aprendizado, a codificação de leis e sistemas administrativos mais complexos, além do florescimento de literatura e arte, que contribuíram para moldar a identidade cultural de diversas sociedades — obras literárias como "A Divina Comédia" de Dante Alighieri e "Os Contos de Cantuária" de Geoffrey Chaucer se destacam bastante. Além disso, esse período não foi de estagnação científica, houve importantes avanços, especialmente em regiões como o mundo islâmico, onde matemáticos e astrônomos, como Al-Khwarizmi, fizeram contribuições significativas, incluindo a introdução dos números arábicos e do conceito de algorítmo. Assim, este período foi crucial para a formação de uma base cultural e intelectual que continua a influenciar o mundo contemporâneo.
No que diz respeito a filosofia medieval, temos, tanto no Ocidente quanto no Oriente, um campo complexo e multifacetado, caracterizado por uma busca incessante por entendimento e integração entre fé e razão. No Ocidente, a filosofia medieval se desenvolveu influência do cristianismo, com pensadores como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino tentando conciliar a tradição filosófica grega, especialmente a obra de Platão e Aristóteles, com os dogmas cristãos. No entanto, junto ao pensamento cristão, temos a coexistência da mística — que também tem seu flerte com o cristianismo — o paganismo que introduziram uma dimensão de busca espiritual direta que muitas vezes desafiava as doutrinas ortodoxas.
Os místicos cristãos, como Meister Eckhart e Santa Teresa de Ávila, enfatizavam a experiência direta de Deus e a transcendência do intelecto, enquanto as tradições pagãs — tendo influencia da tradição neoplatonista — tinha figuras como Marguerite Poret e — puxando para o oriente — Jalâl al-Din Rûmi que buscavam a unidade com o divino através da contemplação e da arte. Temas de dualidade, como a luta entre o bem e o mal, e a busca por um conhecimento superior, eram comuns, refletindo preocupações sobre a condição humana e a relação com o cosmos. Além disso, as tradições esotéricas e ocultas, como a alquimia e a cabala, exploravam o simbolismo e a transformação interior, oferecendo respostas alternativas para questões existenciais e espirituais. Os temas centrais da filosofia medieval incluíam a natureza de Deus, a relação entre a vontade divina e a liberdade humana, o problema do mal, e a questão da salvação. Ao longo desse período, a filosofia também lidou com a ética e a política, refletindo sobre como viver uma vida virtuosa em consonância.
Sobre o Oriente, a filosofia medieval abrangeu uma rica tapeçaria de tradições, incluindo o pensamento islâmico, hindu e budista. Filósofos como Al-Farabi -— e o já citados —, Avicena e Averróis no mundo islâmico buscaram harmonizar a razão aristotélica com a revelação corânica, tratando de questões sobre a existência de Deus, a alma e a eternidade. No hinduísmo e no budismo, questões sobre a natureza da realidade, o eu, e o caminho para a iluminação dominaram o pensamento, com textos como os Upanishads e os escritos de Nagarjuna explorando a interconexão entre todos os seres. A filosofia mística também floresceu, tanto no Ocidente quanto no Oriente, com uma ênfase na experiência direta do divino e na transformação interior, entre conhecimento racional e experiência espiritual. Assim, a filosofia medieval, em suas diversas vertentes, se interessou profundamente por questões ontológicas, epistemológicas e éticas, refletindo sobre a complexidade da condição humana em busca de significado.
Contudo, podemos dizer que a filosofia medieval é aquela reflexão filosófica, produzida na Idade Média, marcada por uma relação cultural entre cristãos, judeus, árabe, etc., e que estende-se por um vasto período que, grosso modo, poderíamos demarcar como sendo mais ou menos do ano 100 até 1500 (VASCONCELLOS, 2014, p. 11). Os pesquisadores do medievo nos leva a ver que a Idade Média é um período multifacetado — cheio de "proto-renascimentos" —, com altos e baixos, contradições e desenvolvimentos, e devemos ter em mente o seguinte acerca do conhecimento dessa época: o pensamento medieval é composto ao todo da filosofia ocidental e oriental. Portanto, temos uma cultura diversificada e a presença dos três grandes monoteísmos e outras cosmovisões (cristianismo, judaísmo, islamismo e também o paganismo).
Referências:
ATAIDE, Glauber. Kant e a Idade Média, período da menoridade intelectual. Filosofia e Psicanálise, 24 abr. 2009. Disponível em: https://www.filosofiaepsicanalise.org/2009/04/idade-media-periodo-da-menoridade.html?m=1. Acesso em: [10 de fev. de 2025].
DE LIBERA, Alain. A filosofia medieval. 2. ed. Trad. Nicolás Nyimi Campanário e Yvone Maria de Campos Teixeira da Silva. São Paulo: Loyola, 2004.
GATT, Pablo; CARNIEL, Joana Scherrer (Org.). Estudos em Medievalismo: sociedade, poder e cultura. Vila Velha, ES: LETAMIS, 2021. (Medioevo: o tempo e o espaço na História, 2). Disponível em: [https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&opi=89978449&url=https://letamis.ufes.br/sites/letamis.ufes.br/files/field/anexo/medioevo_2_-_estudos_em_medievalismo.pdf&ved=2ahUKEwi5lvvynLqLAxVXIbkGHROcNxEQFnoFCIYBEAE&usg=AOvVaw3zt2ugbR8OS71CUs-UY9qQ]. Acesso em: [10 de fev. de 2025].
VASCONCELLOS, Manoel. Filosofia Medieval: Uma breve introdução [recurso eletrônico]. - Pelotas: NEPFIL online, 2014.
Comentários
Postar um comentário