Acerca da apropriação indevida da ideia de ser um "senhor-de-si-mesmo" pelos coachs, por Janilson Fialho

  Acerca da apropriação indevida da ideia de ser um "senhor-de-si-mesmo" pelos coachs

Por Janilson Fialho

Podemos explorar várias interpretações interessantes sobre a extrema noção de liberdade, isto é, de ser senhor-de-si-mesmo, que decide tudo de maneira racional, e que verdadeiramente reconhece o que lhe escapa, ou seja, o que ele percebe que está longe de seu domínio; por outro lado, no entanto, infelizmente houve uma apropriação indevida dessa noção filosófica de liberdade dos estóicos nos dias de hoje, e que essa apropriação foi feita pelos coachs.

Ora, os tais coachs, aqueles que treinam os sujeitos a serem indivíduos com um desempenho individual elevado (ou seja, ser o próprio patrão e funcionário ao mesmo tempo), é a consequência da exploradora e doentia sociedade neoliberal, pois “o ditame neoliberal da liberdade se expressa na realidade como imperativo paradoxal seja livre. Ele derruba o sujeito do desempenho para dentro da depressão e do esgotamento" (Han, 2017, p.12). Contudo, o neoliberalismo, os coachs e o mercado financeiro, fazem uma alienação absurda por meio da mídia e das redes sociais, usando e propagando as ideias dos estóicos como força ideológica para gerar estímulo e influência nas pessoas, para assim haver uma valorização do individualismo torturante, e a finalidade desse individualismo é ser usado para se chegar a uma servidão voluntária disfarçada de sucesso; porém, a filosofia estóica não vai por este caminho ingênuo de escravidão disfarçada de metas e sucesso, pois, sabe-se que a realidade tem regras que o indivíduo sozinho não consegue superá-las, e sabemos bem que na filosofia estóica tem algo importante ignorado por esse coachs, que é a sabedoria de termos noção que não controlamos a natureza.

A fórmula do individualismo alienante promete sucesso, mas o que o sujeito ganhará de verdade é depressão, psicose, narcisismo, ser antissocial, e tratar os outros de maneira utilitarista. O sujeito se ilude com esse falso sentimento de controle do destino e das vicissitudes, de pensar ser o senhor-de-si-mesmo. Além de que isso é somente uma aparência polida destinada encobrir os mesmo procedimentos de caráter, como diz o grande pensador Boécio em sua "Consolação da filosofia". Devemos apenas ter somente como uma vontade de controle a prudência do próprio desejo, pois Boécio ainda dirá em seus versos:

"Todo aquele que persegue a todo custo
Somente a gloria e a estima mais do que tudo,
Deveria observar a imensidão dos espaços celestes
E a relativa pequenez da terra" (Livro II, 14).

Os coachs atiçam o desejo consumista por meio do vício em ler meras frases de conforto a autoestima com seus livros de autoajuda, e isso, na verdade, em nada ajuda, só alimenta um vício. Além de impor metas ilusórias movidas por uma compulsão cega que desafia este indivíduo solitário a mudar o impossível que é a fortuna contra os bens materiais.

Falamos num conceito importante para os estóicos, que é saber que não possuímos o controle da natureza. Podemos ver que este conceito é tratado da seguinte maneira: se não temos o controle sobre a natureza, então temos que ter controle sobre nós mesmos. De fato, este é um conceito individual dos estóicos, contudo, em diversas passagens lemos na obra de Sêneca que isso não está em uma esfera de ser útil aos outros, ela é a felicidade em si mesmo, portanto, o sujeito faz isso sabendo que a finalidade é ele mesmo, ou seja, a satisfação do próprio ser; entretanto, vendo então esta mesma noção, porém, corrompida pelos coachs, isto é, dizemos que quando não há uma recompensa material em troca, ou seja, a felicidade em estar bem consigo mesmo, acaba por se tornar uma coisa infeliz, e isso impensável para a sociedade neoliberal, pois esta tem a visão de tudo ser baseado na troca material útil.

Sêneca escreve bem sobre isso na carta LVII, intitulada "Das boas companhias": “o caminho mais rápido para a riqueza é desprezá-la”. Pensemos então no que os coachs propagam, afinal, de fato já dissemos que eles distorcem boa parte do que é ensinado pelo estoicismo, portanto, nesta frase Sêneca diz (devemos contextualizar) que o sujeito, no caso o amigo dele, não deve se aborrecer com o desejo de possuir uma riqueza demasiada, entretanto, cabe dizer que o filósofo não prega neste momento um voto total de pobreza, ou seja, na carta (e também em outras) ele explica como devemos administrar a riqueza, mas que de fato ele faz é uma apologia da pobreza no sentido de que não devemos nos preocupar e nem devemos ser ambiciosos, e isso está ligado diretamente ao tratamento utilitarista que se dá a natureza e as pessoas por meio de um controle de tudo, ou seja, empregar a esses dois o desejo de dominação para acumular o que é útil materialmente; é então ser um sujeito que usa tudo como se fosse uma escada para os próprios objetivos mesquinhos, e quando não há mais serventia, logo descarta o que outrora fora um amigo, por exemplo.

Há um pequeno trecho de um ensaio escrito por Gilvan Fogel, que dará sentido sobre como uma pessoa dominada pelo desejo de dominação, perde o "puro singelo" (termo usado pelo filósofo), consequentemente essa pessoa tem medo da natureza:

“Este tipo, assim vivendo desde o concluso auto-asseguramento que é a hipertrofia do medo - é isso que define e caracteriza a vigência do coração-máquina -, está, no entanto, por este próprio procedimento ou atitude, empenhando em jamais deixar transparecer esta sua “fraqueza”, este seu “ser-menos-forte”. Ele precisa sempre esconder e escamotear este medo, esta “fraqueza” - vive então na arte e na sua vergonha e a sua tibieza, a sua constante insegurança nas instigações do espírito, na lida do viver. Tal tibieza faz crescer nele a cobiça e a avareza. Ele faz-se avarento e cobiçoso  porque  ele precisa conquistar mais poder, cada vez mais controle, promovendo assim o gigantismo do poder desde a infinita, a ilimitada escalada da vontade de poder” (Fogel, 1998, p. 118).

Não é curioso como a autoajuda, os coachs e o mercado financeiro, trilham o mesmo caminho do assim chamado coração-máquina?  Por que será que eles prezam por tanto controle da vida e da natureza, ou da fortuna? Por que tanto desejo de controlar o puro singelo, do vir a ser? diferente dos estóicos de verdade, eles almejam tanto controle visando uma resposta para além da condição mental. O prazer desses está em possuir, em ser avarento, portanto, o desejo de controle sobre o destino é feito por medo, ora, os estóicos prezam pela satisfação do momento e sem a preocupação com o destino, porém os coachs ensinam a vencer para possuir bens, o que gera então apego, que tem como consequência o medo. Do medo vem a fraqueza, e da fraqueza vem o desejo de esconder o medo, desse desejo vem a arte de viver de maneira forçadamente falsa, a partir desse teatro (chamado coração-máquina) vem a perda do puro singelo, e dessa perda vem a visão utilitarista do mundo, e com essa visão a cobiça.

O indivíduo, como foi dito, não se torna verdadeiramente um senhor-de-si-mesmo, mas sim se torna um escravo da dominação, principalmente no momento em que ele fraquejou diante do puro singelo, do vir a ser, ou seja: da Physistendo agora no peito um coração-máquina, que o faz ter medo do destino, do mundo, como resposta a esse medo recorre-se a dominar o mundo se prendendo dentro de si e desviando o foco desse medo para os bens materiais.

Referências:

FOGEL, Gilvan. Do “Coração-máquina - Ensaio de aproximação à questão da tecnologia. in: Da Solidão Perfeita: Escritos de Filosofia. - Petrópolis, RJ; Vozes, 1998.

HAN, Byung Chul. Agonia de Eros. Trad. de Enio Paulo Giachini. - Petrópolis, RJ; Vozes, 2017.

SÊNECA. Aprendendo a Viver. [Epistulae morales ad lucilium] trad. Lúcia Sá Rebello, Ellen Tanajara Neves Vranas. - Porto Alegre (RS): L&PM, 2007.

BOÉCIO. A consolação da filosofia. prefácio de Marc Fumaroli; tradução do latim por Willian Li. – 2 ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. – (Clássicos WMF)

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