Crítica a ideia de suicídio de Sêneca, por Janilson Fialho
Crítica a ideia de suicídio de Sêneca
Por Janilson Fialho
Constatamos um fato interessante nas cartas do filósofo Sêneca (4 a.C. — 65 d.C.), que ele aparentemente estimula o suicídio, ou valoriza este ato como sendo algo "grandioso" ao homem, o que pode parecer bastante estranho de se pensarmos isso nos dias de hoje.
Na filosofia estoica de Sêneca contém ensinamentos destinados à preparação da mente, como também a renúncia aos bens materiais para suportar a vida com tranquilidade e prazer da alma perante as vicissitudes do dia a dia, isto é, a filosofia que ele ensina é praticamente que o indivíduo deve aproveitar tudo em seu dia como se fosse o último, portanto, ele diz: “podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entende que se morre diariamente?” (Sêneca, 2007, p. 8), é por esta concepção que podemos chegar ao uso de uma expressão latina muito famosa, que é: “Carpe Diem”. Essa expressão latina é basicamente o que foi dito antes por Sêneca, afinal, ela é da mesma natureza estoica, portanto, Carpe Diem, do latim, significa: “colhe o dia”, ou “aproveita o momento presente”.
É do poeta latino Horácio (65–8 a.C.) esta expressão (quase anônima para nós) que faz parte coriâmbica do último verso da ode 1,11 (v.8: aetas), onde o poeta dirigindo-se a Leucônoe, exorta a cândida moça a não investigar o dia de sua morte, ou o futuro, pela astrologia, pois, enquanto busca saber o que ocorrerá, escapa-lhe o invejoso tempo de vida presente. A filosofia de Sêneca não é, senão uma maneira prática de se aproveitar o momento presente, pois sabemos que a morte chegará cedo ou tarde, e para isso devemos estar preparados de corpo e alma para encará-la.
É até engraçado de se pensar que, por causa disso, o senso comum julga que o filósofo só pensa em tais assuntos como a morte, assim o julgando como uma pessoa depressiva, triste e atormentada, porém, é o contrário, a filosofia em todos os momentos de sua existência de fato buscou compreender a morte, e os filósofos estoicos fazem parte dessa investigação, mas eles são os que buscam uma resposta para ela baseada em uma maneira prática de se viver, e neste caso, o viver bem é essencial para superar o medo da morte. Entretanto, veremos isso depois, mais a frente vamos nos deter sobre como é levar a vida de fato segundo os estoicos comparando com a corrupção moderna que estes sofreram pelos coachs, ao fazermos isso passaremos para um problema crucial que Sêneca aborda, sendo o suicídio; contudo, observe essa passagem:
"Não existem obstáculos para quem deseja deixar a vida. A natureza nos mantém em cárcere aberto. Quando as necessidades permitem, busque-se uma saída fácil; quando se tem em mãos muitas saídas possíveis, deve-se fazer a escolha e considerar o melhor modo de se libertar; quando a ocasião é difícil, deve-se considerar a melhor, a que estiver mais próxima, seja inaudita ou insólita. A quem não falta coragem para a morte não faltará também imaginação" (Sêneca, 2007, p. 47).
Desta maneira, vemos aqui que o suicídio é tratado como uma "saída honrosa desta vida" para o autor, pois ele pensa que o indivíduo tem total certeza de si, total controle da sua decisão. Vamos nos atentar a observar mais uma passagem de Sêneca: "Deve-se preferir a mais imunda morte à mais limpa servidão." (Sêneca, 2007, p. 46). Parece que a decisão demonstra o mais alto grau de autonomia do ser, ou podemos dizer, de libertação da servidão.
Sêneca, portanto, diz que neste caso devemos acolher a morte com tranquilidade, ou seja, pela ataraxia (a impertubabilidade da alma), pois só assim para vencermos o medo da morte; e que, portanto, desta maneira, o homem traquilo perante a natureza tem a força de decidir se a vida vale ou não a pena ser vivida. Entretanto, é curioso pensarmos como isto é um julgamento muito pesado para se colocar nas costas de um ser humano destruido pela angústia.
O suicídio, nesta perspectiva, parece de fato um ato racional, isto é, uma escolha racional e não um impulso. Entretanto, quando lemos a frase de Sêneca onde entendemos que é preferível a morte à ser subserviente, ou explorado, que é melhor a morte perante o opressor do que entregar o paradeiro da família e dos amigos a um torturador, por exemplo, consequentemente, podemos pensar que tal indivíduo realizou um ato racional de bravura. No entanto, de algum modo, bem lá no fundo há o escape, há a fraqueza, há a fuga do próprio sofrimento, há o medo, que pode negar o ato corajoso de proteger a família, ou seja, não foi cem por cento altruísta e nem cem por cento egoísta, foi o que tinha de ser para ele, e só ele sabe o que fez, restando apenas a nós decifrar o motivo. A ataraxia é o que almejamos, mas é difícil de possuirmos, e mais difícil imaginarmos um homem que foi torturado e traumatizado fazer isso de maneira tranquila, este homem estava destruído, apenas flutuando na vida que foi marcada pela dor. Infelizmente podemos supor que ele perdeu a fé em si mesmo e no mundo.
Sendo assim, o indivíduo que se encontra em um estado mental afetado pela depressão ou angústia é de se perguntar o seguinte: como é possível ele tirar a própria vida? Como isso seria? Não seria o oposto da ataraxia? Ora, então o julgamento de que a vida vale ou não vale a pena ser vivida, como indaga o filósofo Albert Camus, só deveria ser feita de maneira ao indivíduo racional, isto é, só deveria ser para aqueles de mente saudável, e não quando se está com a mente doente, porque é mais comum a mente doente e suicida visar apenas a troca das sensações de sofrimento para o alívio. Aquele, cujo estado mental está saudável dirá que sim, vale a pena viver; entretanto, aquele cujo estado mental está doente dirá que não vale a pena viver. Podemos pensar então que a pessoa cujo estado mental saudável tem consciência do que diz, pois tem razão sobre si e de suas ações, logo não tem necessidade de uma busca violenta pela necessidade de adquirir a sensação de alívio com urgência; já aquele que está em um estado mental doente não tem consciência do que diz, logo não tem razão sobre si e sobre suas ações, e neste caso busca então aliviar o sofrimento com urgência, até mesmo utilizando o suicídio como remédio. Dizer que a morte é uma solução, ou um remédio, recairá no que já foi dito: escapismo irracional para uma solução complicada pautada pelas sensações. Deste modo, reduz o debate a insensibilidade racional, e a uma intervenção solitária e demasiadamente irracional.
Sêneca trata essa questão com muita serenidade, como podemos ver na carta em que ele trata propriamente sobre o suicidio, onde ele cita o exemplo de um homem chamado Túlio Marcelino, este que está acometido de uma doença não incurável, mas que é longa e que exigia ser tratada cuidadosamente. Todavia, Sêneca diz que em determinado momento Túlio Marcelino começou a deliberar sobre a morte, sobre o suicidio. Deste modo, ele convocou inúmeros amigos para tratar deste assunto. Pois bem, cada um dava a sua opinião, ou seja, alguns, por serem covardes, aconselhavam-no a fazer aquilo que eles próprios fariam, ou seja, se acovardar diante da morte; outros por serem aduladores e amáveis, davam-lhe o conselho que valorizava a decisão de Túlio Marcelino. Dado essas duas visões opostas apresentadas pelos servos sobre a deliberação de Túlio, entretanto, um estoico deu o conselho mais "adequado", de acordo com Sêneca, assim, pois, ele disse:
"Meu Marcelino, não te atormentes como se delirasses sobre um grande fato. Viver não é uma grande coisa; todos os teus escravos vivem, todos os animais também; o verdadeiramente grande é morrer com honestidade, prudência e coragem. Pensa que há muito tempo fazes a mesma coisa: comida, sono, libido - a vida se resume a isso. Não só o prudente, o forte ou o miserável pode desejar morrer, também pode o enfastiado".
Veja como o tratamento estoico sobre o suicidio parece estar na decisão, na escolha, como já foi dito. A autonomia de si leva a escolha sobre a vida, pois é visto que o suicídio é tratado como "um grande fato" na lógica do "viver não sendo uma grande coisa", pois o grande fato é ter o poder de escolha de continuar vivendo ou não, tudo depende da razão na escolha, mas já começamos a questionar em que consiste essa escolha, isto é, se ela é de fato racional ou um escapismo das sensações. Continuando no pensamento, a vida dar-se de graça a qualquer ser, ou seja, ela está em qualquer um, como podemos ver nos exemplos usados por ele. Portanto, neste tema, podemos notar que sim, há uma valorização do suicídio como algo nobre no pensamento estóico; há uma apologia no dizer: o verdadeiramente grande é morrer com honestidade, prudência e coragem. Ser honesto consigo mesmo diante desse problema, e ter prudência em avaliar a sua vida, se vale ou não continuar vivendo, e por ter a coragem de realizar o ato. O problema de Marcelino é que ele está enfastiado de sua condição material confortável, ora, outras possibilidades poderiam ser encontradas para este problema, supomos que ele nada fazia de trabalho braçal para distrair a mente, mas será que a solução está no trabalho? A rotina monótona também é um problema, e ela está em todas as esferas da praticidade, e mesmo nessa situação cômoda, em que nada se fazia, sua vida era rotineira: "comida, sono e libido". A falta de desejo em viver atinge até quem vive assim, pois seus desejos já se esgotaram, pois seguindo uma visão aristotélica, podemos notar que ele não era um sujeito virtuoso, não alcançou a verdadeira felicidade, parou no meio, ou seja, no meio das riquezas. O estóico assim vai aconselhar a ter uma atitude racional e prudente que quebre este círculo vicioso, que o livre do fastio, e no exemplo a solução é o suicídio.
O problema com a apologia de Sêneca ao suicídio reside em algumas questões éticas e morais. Em primeiro lugar, o suicídio é amplamente considerado uma ação trágica e irreversível, que termina com a vida de uma pessoa. A maioria das sociedades e tradições éticas considera o valor da vida humana e busca promover sua preservação, a menos que haja circunstâncias extremas e "justificáveis", como casos de sofrimento insuportável ou doenças terminais. Além disso, a apologia ao suicídio pode ser bastante perigosa, especialmente quando se trata de pessoas vulneráveis ou que enfrentam dificuldades emocionais e psicológicas. A glorificação ou encorajamento do suicídio pode enviar uma mensagem prejudicial e influenciar negativamente aqueles que já estão lutando com problemas de saúde mental.
Confirmamos mais uma vez como Sêneca trata o suicídio como sendo uma decisão grandiosa. Mas isso não deixa de ser problemático, será que não há outra maneira de manter-se vivo? Na concepção estóica de Sêneca: não importa se vive muito ou pouco, aproveite a vida, aproveita o dia, pois nada levará quando morrer, então não se apegue a nada, se já está satisfeito de tudo dessa vida e já não tem mais motivos para se fazer, retira a tua vida caso queiras, pois só a isso o indivíduo é responsável. Todavia, a solução do fastio, e até mesmo da vida, de Sêneca é simplista, além de que isso não é uma decisão consciente como já fora dito, ora, é impossível pensarmos em nos matar de maneira opcional quando estamos emocionalmente bem, então como podemos dizer que é uma decisão prudente, a não ser que, voltemos a dizer, só uma mente doente é quem sente o desejo de tirar a própria vida. Afinal, onde está a prudência em uma mente afetada, e onde está a razão nela?
Mas, e quanto aos outros que não estão enfastiados de sua boa condição material, ou seja, e quanto aos que estão em uma condição horrível como a escravidão, por exemplo: "A liberdade está tão próxima e há escravos ainda? Então, não preferirias que um filho teu morresse assim a vê-lo envelhecer servil e covarde? Por que, então, te perturbares, se até mesmo um menino é mais forte que a morte? Pensa que, se não quiseres seguir, serás arrastado. Fazer por vontade própria aquilo que não podes mudar. Não assumirás o espírito daquele menino para dizer "não sou escravo? Infeliz, já és escravo dos homens, escravo das coisas, escravo da vida; até mesmo a vida, se falta a virtude para morrer, é uma escravidão." (Sêneca, 2007, p.50)
Ninguém quer ver um filho escravo, mas qual a opção do heroísmo passivo senão morrer? Poderíamos pensar em lutar contra a opressão, mas este acha melhor a morte. Há um tratamento de invencibilidade do destino nas coisas materiais nesta passagem. Podemos imaginar que a situação descrita seja assim: você não pode fazer nada para mudar a escravidão ou a servidão daquele por este, então como você não pode mudar a configuração da estrutura ao seu redor, você por não aceitar só tem a opção de se matar. Aceitar esta lógica onde só há duas opções parece reduzir o mundo ao simples absurdo, de aceitar ser escravo ou se matar. Se somos escravos dos homens, podemos mudar essa relação tanto por um acordo quanto pela força, ou seja, para além de aceitar a vil exploração. Da escravidão aos bens materiais de fato é um problema, a cobiça desperta o ódio entre os outros, o que leva a exploração do homem pelo homem, hoje podemos dizer mais do que antes que o homem está mais escravizado aos bens materiais e a coisas abstratas ligadas a economia, deste ponto a essa escravidão restam poucas variáveis a se usarem. Ser escravo da vida não devia ser um mal, já que nada tem depois dela (seguindo o raciocínio de Sêneca); ora, não importa a duração, mas sim a qualidade, e se temos uma boa qualidade de vida, qual é a vantagem de trocar a boa qualidade pelo nada? Mas Sêneca quer que sejamos desapegados da vida, o que parece ser bastante complicado para aquele que está em uma situação confortável materialmente falando, e com uma mente saudável, diferente da de Túlio Marcelino. Veja então:
Mas, e quanto aos outros que não estão enfastiados de sua boa condição material, ou seja, e quanto aos que estão em uma condição horrível como a escravidão, por exemplo: "A liberdade está tão próxima e há escravos ainda? Então, não preferirias que um filho teu morresse assim a vê-lo envelhecer servil e covarde? Por que, então, te perturbares, se até mesmo um menino é mais forte que a morte? Pensa que, se não quiseres seguir, serás arrastado. Fazer por vontade própria aquilo que não podes mudar. Não assumirás o espírito daquele menino para dizer "não sou escravo? Infeliz, já és escravo dos homens, escravo das coisas, escravo da vida; até mesmo a vida, se falta a virtude para morrer, é uma escravidão." (Sêneca, 2007, p.50)
Ninguém quer ver um filho escravo, mas qual a opção do heroísmo passivo senão morrer? Poderíamos pensar em lutar contra a opressão, mas este acha melhor a morte. Há um tratamento de invencibilidade do destino nas coisas materiais nesta passagem. Podemos imaginar que a situação descrita seja assim: você não pode fazer nada para mudar a escravidão ou a servidão daquele por este, então como você não pode mudar a configuração da estrutura ao seu redor, você por não aceitar só tem a opção de se matar. Aceitar esta lógica onde só há duas opções parece reduzir o mundo ao simples absurdo, de aceitar ser escravo ou se matar. Se somos escravos dos homens, podemos mudar essa relação tanto por um acordo quanto pela força, ou seja, para além de aceitar a vil exploração. Da escravidão aos bens materiais de fato é um problema, a cobiça desperta o ódio entre os outros, o que leva a exploração do homem pelo homem, hoje podemos dizer mais do que antes que o homem está mais escravizado aos bens materiais e a coisas abstratas ligadas a economia, deste ponto a essa escravidão restam poucas variáveis a se usarem. Ser escravo da vida não devia ser um mal, já que nada tem depois dela (seguindo o raciocínio de Sêneca); ora, não importa a duração, mas sim a qualidade, e se temos uma boa qualidade de vida, qual é a vantagem de trocar a boa qualidade pelo nada? Mas Sêneca quer que sejamos desapegados da vida, o que parece ser bastante complicado para aquele que está em uma situação confortável materialmente falando, e com uma mente saudável, diferente da de Túlio Marcelino. Veja então:
"O que mais há que te causa dor deixar? Os amigos? Mas tu sabes ser um amigo? A pátria? Por acaso a tens em tanta estima que por ela retardes o jantar? O sol? Aquele que, se pudesses, o extinguirias. Fizeste algo para ser de digno de sua luz? Confessa que não é por causa do senado, nem do foro, nem do desejo das próprias coisas da natureza que tu retardas a morrer; tu abandonas de má vontade um mercado do qual nada te falta experimentar." (Sêneca, 2007, p. 51)
Ora, de fato é melhor termos e sermos apegados à vida e ao que nela se pertence, mas não façamos isso não por cobiça, mas sim por prazer e felicidade, isto é, aproveitar tudo o que temos no nosso tempo de vida perante a fortuna. Não há virtude nos exemplos suicidas de Sêneca, há desespero, e o pensador não tem empatia para ver e reconhecer o que é desespero. Podemos ver também que nem mesmo os ditos niilistas têm coragem de negar a própria vida por meio da descrença total, só o fazem quando estão profundamente perturbados e fora da razão, afinal, quando estes estão normais, não tem essa coragem toda de levar até às últimas consequências o seu niilismo.
Pois bem, assim é a vida, diz o filósofo: não nos interessa pelo quanto ela dura, mas por quão bem foi vivida. Não importa onde tu irás parar, isso é outro problema que foge do controle humano. Contudo, apenas lhe impõe um bom desfecho, chega no fim e pensa no que foi vivido, se suas lembranças tem boas recordações, algo que ponha um sorriso no rosto, então saiba que viveu bem e que nada deve a este mundo. Entretanto, em nenhuma hipótese podemos negar a vida.
Consideramos importante lembrar que o contexto histórico e cultural de Sêneca também deve ser apontado ao analisar suas visões sobre o suicídio. Na Roma antiga, o suicídio era visto de maneira diferente do que é hoje, além das motivações e circunstâncias que eram interpretadas de maneira distinta. No entanto, em nossa época, para sairmos do contexto histórico e literário, vemos nossa vida se encontrando em um complexo fluxo frenético. Somos bombardeados por uma gama muito pesada de informações o tempo todo, além de que a nossa vida, os nossos contatos e relações sociais, parecem estar cada vez mais mercantilizado, desde o berço até a velhice, ou seja, estamos sendo contaminados de informações e cobranças sociais, cujo resultado é um “agir mercadológico” doentio. Até a cura mental está contaminada por essa doença do mercado. A depressão e o suicídio aparecem cada vez mais na sociedade sobrecarregada e cansada mentalmente por parte de uma fragmentação da vida por meio de uma incerteza no âmbito material.
O sujeito está cada vez mais individualista, e tendo sua existência resumida a uma auto-servidão produtiva. Cada vez mais afogado em uma angústia existencial, e vivendo em um falso movimento desolador de progresso. Será que a solução simplória de deixar a vida de Sêneca faz sentido hoje? É interessante como o pensamento estoico voltou a cena de maneira distorcida pelos agentes das mazelas sociais, será isso a prática desse pensamento acerca do suicídio posto de maneira indiretamente e distorcido na nossa mente? A verdade que podemos observar é que corromperam os estoicos, e o neoliberalismo sujou a imagem e distorceu a sua mensagem com uma ideia de pulsação tresloucada do sempre desejar mais e mais, de querer o próprio querer, somando-se a uma falsa alegria e satisfação, uma falsa noção de que somos senhores de si mesmo nessa sociedade complexa, podemos pensar que essa falsa noção seria um veneno a curto, ou a longo, prazo que nos levaria direto ao suicídio? Os coachs transformaram a felicidade em um veneno bastante tóxico e viciante por meio da literatura de autoajuda (somando também com as palestras e cursos), e uma vez que bebemos dessa fonte sentimos a dopamina agindo na nossa mente causando um breve momento de felicidade e confiança, mas logo passa, assim sentimos mais necessidade de ler mais autoajuda, pois, a mente começou a ficar viciada em palavras de conforto; portanto, caímos na armadilha mercadológica dos coachs, sendo manter a infelicidade no indivíduo como uma espécie de vício angustiante e a felicidade como droga.
O nosso contexto social contém um carrasco sem rosto que perambula na sombra da nossa mente, entre o macro e o micro do ser, ele que usa uma máscara que mimetiza o nosso rosto, que nos controla para correr atrás de meros números cifrados e códigos; este carrasco nos flagela todo santo dia com uma rotina mecânica, com poções venenosas vendidas em cada esquina, o desejo ilusório e urgente de vencer uma corrida a um destino incerto, e que por fim põe uma corda anestésica no nosso pescoço a noite. Entretanto, de algum modo resistimos a tragicidade, e resistimos com um otimismo natural, assim como foi dito por Conte-Sponville: "existir é resistir; pensar é criar; viver é agir" (2002, p.121). Portanto, seguimos lutando.
Seguimos na luta afirmando a nossa real existência em meio ao teatro mundano, cujas peças vão desde a tragédia até a comédia. Resistimos a vida, mas não descartamos a possibilidade de podermos cair no abismo profundo, pois a sanidade é testada a todo momento. Não que o mundo seja somente dor e desespero, mas é pela evocação dessas palavras horríveis que afirmamos o nosso compromisso de viver, de afirmar a vida, de celebrar ela, e de lutar contra a tragédia; ora, por que devemos nega-la perante as adversidades? Se desprender da vida é uma solução? Talvez para quem já seja um doente niilista que se entrega ao primeiro impulso escatológico de negação. No entanto, se um impulso nos move ao abismo, também um impulso nos move a sobrevivência. Qual impulso? Podemos dizer que ele seja bem misterioso, mas podemos dizer que seja algo além do mero extinto de sobrevivência, talvez seja o impulso da busca pela felicidade. Mas qual felicidade? Aquela que não seja um meio qualquer, mas não negamos os meios e nem os desprezamos, pois, eles são fundamentais. Um exemplo de meio que pode afirmar a nossa existência humana, e também nos livrar do sofrimento e da vontade suicida, é a arte! Mas será que a arte (alguns poderão dizer) também não é uma espécie de escapismo da realidade? Não. Porque ainda estamos na realidade, não nos privamos dela, não fugimos/escapamos dela para sempre, ou podemos dizer: não fugimos da vida. A arte nos faz permanecer vivos, pois ela transborda para a realidade a expressão e a afirmação de vida do ser humano. Como é dito pelo poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770 – 1843), por meio das interpretações do filósofo Heidegger: "Poeticamente habita o homem sobre esta terra". A poesia, ou melhor, a arte como um todo, junto da filosofia, é a tecedora das possibilidades da existência humana, ou seja, ambas são as ferramentas para conceber a auto-afirmação de si sobre o mundo, abraçando a realidade e superando a angústia existencial.
Quem melhor para falar do amor pela vida do que um artista? Afinal, este experimenta todos os sabores da vida, desde o doce resplendor da felicidade até o amargo da melancolia, e por fim transforma estes sabores em arte, e arte é o que dá sentido à razão a vida humana, portanto, um ciclo de significado existencial. Um exemplo bastante interessante a ser usado aqui é um relato do pianista Arthur Rubinstein. Dentre os inúmeros documentos sonoros que Arthur Rubinstein deixou ao longo de sua carreira, destaca-se a importância da magnífica entrevista, realizada por Robert MacNeil. Vejamos então as palavras de Arthur Rubinstein nesta entrevista: “Meu amor pela vida é totalmente incondicional. Acredite você, ou não. Você já sabe que já não posso ler ou escrever. Perdi minha visão central. Eu não enxergo as coisas que olho diretamente. Ainda assim posso viver! Não estou cego, pois vejo o que me rodeia. Por isso ainda sou independente. Não totalmente. E desse modo, recentemente, descobri uma nova beleza na vida!”.
O entrevistador pergunta, ou melhor, tenta compreender o porquê de Rubinstein se considerar um homem feliz: “Minha felicidade vem, a sensação e a consciência de felicidade, veio logo depois… que eu tentei o suicídio. Isso na ‘madura’ idade de vinte anos, porque eu havia chegado a essa ‘zero’, se posso dizer assim, não havia nada para mim. Estava numa armadilha em Berlim, e prometi voltar com algum dinheiro, e voltar a dar concertos, e não consegui nada disso. Estava num hotel em Berlim há algumas semanas e não tinha como pagar pelo quarto. A mulher que eu amava, casada, prometeu se divorciar e não fez. E terminou comigo. Eu não me atrevia a falar sobre isso com meus pais. Estava completamente isolado, ninguém sabia onde eu estava. Tentei me suicidar, não funcionou. Veja, continuo vivo! Tentei me enforcar, a corda quebrou, caí no chão. Era infeliz, toquei um pouco de piano, tinha muita fome. E quando saí na rua, de alguma maneira havia renascido. Havia renunciado a minha vida, e logo a tive de volta. Mas essa volta… foi muito estranha. De repente, me dei conta, muito claramente, do bobo que eu era antes. De que a vida não depende, em nada, de coisas como pagar um hotel, ou se uma mulher te deixou, ou se acabou sua carreira. A vida é aquilo que te dá. Está diante de você”.
O entrevistador ainda pergunta a Rubinstein se ele acredita em Deus, e o pianista responde: “Claro que acredito, mas meu Deus não é um senhor com barba. É um poder… um poder incrível, extraordinário. Toda minha vida, me preocupei com uma questão. Uma única pergunta que importa: para quê estamos aqui? Quem fez isso? Quem começou isso? Ninguém vislumbrou, jamais teve a menor ideia de porque tudo isso começou. Começou com as leis religiosas? Sim, mas elas nos dominam. Vão governando você. Isso está bem, isso não. Você tem que acreditar nisso, tem que acreditar em Deus. Estou feliz em acreditar! Mas deveria ter, também, um sinal. Deveria ter algo nos mostrando porquê e o quê. Você não pode achar que um terremoto que mata milhares de pessoas, crianças, é algo que Deus fez para o bem da humanidade. Alguém me perguntou outro dia: ‘você acredita em vida depois de sua morte?’. Uma pergunta pertinente… eu disse: ‘eu não acredito.’. Mas, se existe a vida depois da morte… se é algo possível, eu adoro a ideia! Claro! Mas se eu acreditasse nisso, e descobrisse que não há nada… que sou um animal enganado, que minha vida acabou por completo… eu ficaria muito decepcionado, e nem poderia expressar isso! Acho que o meu ponto-de-vista não está muito equivocado. Acho que alguma coisa disso é verdade. Bem… é isso que eu penso. Mas, acredito cada vez mais que o que temos realmente, o que é nosso, o que temos de verdade, é isso: a vida. As pessoas dizem que a felicidade é rir o tempo todo… é tomar chope ou comer filet mignon… ir para cama toda hora, ganhar no jogo… isso é estupidez. Não é nada disso! Tem de haver um contraste, senão você não desfruta. Eu não sei… isso não é vida!”.
Aparentemente a única coisa real e concreta é a vida, mesmo tendo nela a tristeza e a felicidade, ou seja, dois temperos contrastantes e essenciais que dão sabor à existência, então, porque negar este único bem terreno? Essa única coisa real aos nossos olhos? Portanto, devemos evocar algo próprio ao ser humano, algo ontológico, como a esperança, pois a esperança é algo que transcende a dor e ao sofrimento humano. Há algo no ser que o mantém vivo todas as manhãs, algo interno que o faz lutar pela vida a todo instante. A esperança não é uma ilusão, ela é uma força, um desejo, que contraria a morte, o sofrimento e a tristeza.
A esperança, a fé, o desejo e a compaixão, todas elas contrariam a lógica niilista ou a "certeza" fria sobre a vida e seu destino, ela é a força natural e sobrenatural que impede o suicídio, que impede o indivíduo de se entregar ao abismo. Contudo, contrariar o suicídio é lutar pela vida estando em uma perspectiva trágica, o final virar de qualquer forma, porém temos um instinto que vai além e que desperta o nosso desejo de viver, mesmo que seja viver na agonia, portanto, é o desejo de vencer as mazelas mesmo que seja integrando parte da vida ao sofrimento. Somente a esperança alimenta e fortalece a nossa vida e a eventual pós-vida.
Referências:
CODALARIO.COM: LA REVISTA DE MÚSICA, 2020. Disponível em: https://www.codalario.com/arthur-rubinstein/noticias-2020/el-dia-que-arthur-rubinstein-nos-hizo-una-importante-confesion_8994_98_27892_0_1_in.html . Acesso em: 10 de janeiro de 2023. O dia em que Arthur Rubinstein fez uma confissão importante para nós (El día que Arthur Rubinstein nos hizo una importante confesión), in: documentário: Arthur Rubinstein at 90, entrevista realizada por Robert MacNeil.
COMTE-SPONVILLE. Apresentação da filosofia. Trad. de Eduardo Brandão. - São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HAN, Byung Chul. Agonia de Eros. Trad. de Enio Paulo Giachini. - Petrópolis, RJ; Vozes, 2017.
HASEGAWA, Alexandre Pinheiro. Horácio, o poeta (não apenas) do ‘carpe diem’. Estado da Arte, 2018, link do texto: https://estadodaarte.estadao.com.br/horacio-o-poeta-nao-apenas-do-carpe-diem/
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. In: Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014a.
HÖLDERLIN, F. (1944). Poemas. (Paulo Quintela, trad.). Lisboa: Instituto de Cultura Alemã
SÊNECA. Aprendendo a Viver. [Epistulae morales ad lucilium] trad. Lúcia Sá Rebello, Ellen Tanajara Neves Vranas. - Porto Alegre (RS): L&PM, 2007.
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