Poema: O sono dos justos - Janilson Fialho

O sono dos justos

(Elegia em memória do meu irmão)

Janilson Fialho

I 


Da sombra misteriosa da existência

Eu venho como um espectro zombeteiro

Trajando um manto que reflete

A imagem do universo,

Carregando na aparência mortal

Um sorriso sincero no pálido rosto que me faz letal.


Do tempo eu sou a dona,

Como também sou o próprio silêncio.

Sabes muito bem quem eu sou,

Ou que eu faço?


Portanto, se tem conhecimento,

Sabes que a minha tarefa é implacável.

Chegarei como uma brisa invernal

Antes de se revelar

O majestoso brilho do sol no amanhecer,

E no mais tardar

Serei como a última luz do crepúsculo

antes da noite eterna mostrar a face misteriosa.


Contudo, independentemente da hora ou do lugar,

Estarei presente no dia e na noite,

E conduzirei aqueles que partiram pelo Jordão

Aos umbrais de minha morada

Para repousar em um leito de flores

O sono perpétuo.

O sono dos justos.


II


Com tristeza eu permaneço em vida,

Carregando o fardo da ausência nas costas,

Tal como Atlas sustenta o peso mundo,

E o faz através da dor.


A infelicidade é agora

Uma chaga aberta na minha alma,

Que pode ser temporariamente sanada pela consolação,

Pois a consolação é o último filtro enganador

Dos pobres desesperados.


A ideia de existir a morte

É de certa forma tão absurda para consciência

Que nem em sonhos somos capazes de visualizá-la.


A morte é absurda,

Principalmente quando se faz presente

Em nossa morada,

Pois culmina em nos deixar pensativo

Sobre essa dualidade universal tão contrastante

Que é a vida e a morte.


Era o que eu concebia mentalmente

Ao levar a minha pobre mãe

Que soluçava de tristeza,

Com a face expressando desalento,

E com os olhos cintilantes

Derramando lágrimas-de-luto,

Para longe do túmulo recém selado.


O que mais pesou no meu coração

Foi perceber acusticamente ela verbalizar:

“Boa noite, meu filho, boa noite”.


Assim desabafo

Através das palavras do quinto evangelista,

E convoco mais alguém a compartilhar

De meu pranto à lamentar:

“Venham, filhas; me ajudem a chorar!”


Vida e morte,

Dois opostos extremos

Que carregam uma veracidade

Absoluta no mundo.

Ela é o fim terreno,

É a certeza que nos assombra.


Vida e morte,

O som da vida e o silêncio da morte.

Vida e morte,

A esperança e o sonho da eternidade

Ficaram para os vivos,

Porém, a eternidade autenticamente

Pertence aos mortos.


A cada noite uma pequena morte

Se faz presente por meio do sono,

Porém, a ressurreição nasce

A cada manhã com o brilho do sol.


O luto dura por um ano,

Um ano que parece uma eternidade,

Uma eternidade que parece distorcer

O tecido do espaço-tempo,

Assim fazendo essa paixão

Perdurar em nosso consciente

Como uma flagelação

Sem fim no coração.


A dor chega a um vértice

Em cada momento de celebração,

E a lembrança volta de maneira soturna

Na data de nascimento,

Trazendo memórias

Que por fim se tornaram agora

Partes de uma história,

Elas são agora

Apenas lembranças de um passado

Que não mais volta,

Agora não é apenas nostalgia,

Pois não tem como porventura fantasiar,

Porque ao revirar o passado,

sabe-se que no presente há um vazio

Que não tem como ser preenchido.


O ciclo de dor encerra-se em um ano,

Na data da morte,

Portanto, fechando-se o ciclo do luto,

Mas a cicatriz não se fecha por completo,

Até pode inflamar,

Ou necrosar,

Depende da forma que se lida com essa ferida cálida.


Agora ele dorme,

Descansa em um sono profundo,

Deitado em seu jazigo forrado por flores brancas.


Agora ele dorme,

Trazendo a face uma expressão de conforto,

Aliviando a dor da passagem.


Já não reconheço tua face,

Ela mistura várias fases de tua vida,

A inocência da infância

E a vivacidade da juventude.


Agora digo para ti:

Descansa.

Retire das costas o peso da vida mundana;

Agora descansa,

Você não tem mais com o que se preocupar,

Deixe isso para nós

Que ainda vivemos nessa breve insônia.

Tenha uma boa noite de sono.

O sono dos justos.


III


Pela imprudência eu parti,

Porém, deixando um grande legado de bondade.

Minha presença agora foi substituída

Pela irrefutabilidade da dor marcada pelo vazio.


Da imprudência eu não ouvi

As palavras do sábio obscuro de Éfeso,

Aquele que defendia o devir, que:

“Morte é tudo que vemos despertos,

E tudo que vemos dormindo é sono”;

Contudo, minha paixão foi decorrente

Do meu sentimento quixotesco que tinha pelo mundo.


Portanto, piedade,

Eu te peço,

Com amargura,

Tem piedade de mim!


Estou febril,

Meus sonhos só levam a desordem

Ao me deparar com o trágico destino humano.


Vejo duas figuras em um diálogo absurdo,

Elas se parecem com a alma e a morte;

A vida e o vazio;

A existência e a não existência;

A dualidade perpétua.


Meu ouvido está se fechando,

Não ouço mais o mundo,

Não escuto quem ficou para trás,

Não sei de quem é a voz que me chama agora.


Agonia!


Dói a passagem,

Ela causa medo em mim,

O medo do destino incerto.


Vejo tudo azul,

Ou será branco?

O azul se distancia do branco

E se mistura com a escuridão,

E o zumbido...


O zumbido que havia na minha cabeça já foi embora,

Será que ele foi levado

Pelo monstro que mora no guarda-roupa?

Quem sabe o que eu vejo agora

Seja apenas um reflexo de minha face borrada

Por esse espelho sem brilho?


Delírio?


Delírio seria o que eu estou vendo?

Em que momento deixei de delirar?


Revolta!


Sim, revolta pelo acontecido.

Não,

É medo.

Medo de quem afinal?

Medo de mim?

Quem foi que bateu na tua janela ontem a noite?

Não sei,

Talvez seja ela me chamando para seguir viagem.


Não temes os habitantes do escuro?

Tua casa não é mais um castelo fortificado,

Agora vive sob vigilância,

Mas quem me vigia?

Os números te dirão.


Medo, é isso o que tu sentes, não é?

Não sei,

Geralmente fujo para debaixo do cobertor

Quando tenho medo do escuro,

Então, porque eu não fugi desta vez?

Por que olhas a tua mão no escuro?

Não sei,

Não sei se isso é a minha mão.


Quem é esta figura que se aproxima?

A silhueta escura dela

Em contraste com a luz vem ao meu encontro.

Sua face...

Sua face carrega um sorriso gentil.

Ela diz:

“Vem, me dê a mão. Siga-me, venha por este caminho”.


E assim profere ao mundo:

“olhem!

(Quem?)

O noivo.

Olhem-no!

(Como?)

Como um cordeiro”.

E no meu ouvido ela sussurra:

“deixe que te pese a alma

Pelo cordão de três nós na cintura,

E recite a prece àqueles que te atalharem,

Assim vamos por este jardim dos mistérios,

Te levarei ao teu leito”.


Ao chegarmos,

Ela me deita como se eu fosse uma criança.

Sinto sono,

Muito sono.

Agora só quero dormir.

E ela fala para mim de maneira carinhosa:

Agora, durma.

Durma...

O sono dos justos.


IV


Eu sou uma trindade mortal e eterna,

Imortal e passageira,

Eu estou na morte e a morte está em mim,

Assim como eu estou naquele que partiu

E aquele que partiu está em mim que ficou.


Sou aquele que traz conforto para os vivos,

Como também sou aquele que quer descansar,

Assim como sou a essência final da vida.


Sou aquele que atravessa o abismo sem temer,

Porque da sombra eu venho

E me levo para luz eterna,

e isto conforta o meu coração

que permanece em vida e morte,

Neste eterno metamorfosear absurdo metafísico,

Porque sei que estou dormindo

O sono dos justos.

Comentários

Postagens mais visitadas