A essência do artista como criador da própria realidade - por Janilson Fialho
Toda arte tem
sentido, isto é, não existe essa sentença de que alguma coisa possa ser criado
sem algum sentido, principalmente para a arte, afinal
o sentido é dado por aquele que observa, como também
é dado por aquele que cria a arte, porque de alguma maneira ou
de outra, o sentido é dado pela razão, como também por outro sentido que vem de uma palavra grega: "aesthesis". Esta palavra grega é quem deu origem ao vocábulo "estética", que significa percepção sensível, sensibilidade ou sentimento; portanto, este sentimento estético de contemplação é algo notadamente humano, ou seja, a interpretação está nos olhos do observador, como
também o sentido e a razão do objeto está ato de criação
do artista.
Ao deparar-me com a célebre obra do artista Duchamp, o famoso mictório,
sendo usado por alguns influenciadores digitais em cursinhos para
vestibular, assim explicando de forma rasa a ideia do artista. Contudo, é
perceptível que eles acabam por passar uma interpretação vaga e carente de
informação que Duchamp era um artista que enganou as pessoas, assim
vejo muitas pessoas reproduzindo como um papagaio a ideia dele de
maneira como se fosse uma piada, isto é, que a proposta
do artista naquela época era simplesmente debochar
das pessoas que atribuíam sentido a tudo que viam nas galerias, ou
seja, a crítica ao sentido de tudo no mundo das artes.
Cabe situar o leitor qual era o momento
histórico que Duchamp estava, para assim explicar o estilo artístico
dele. Nos anos de 1960, o termo Antiarte ganhou muita força para descrever as
obras da época que não seguiam a tradição conservadora da academia, e não era
apenas mais uma vanguarda estética vinculada a técnica, mas era o
questionamento geral do que era de fato a arte, isto é, era um momento
para explorar ainda mais a abstração dos objetos, e o sentido que
os objetos do cotidiano podem ganhar sob o desejo do artista.
Portanto, faz-se necessário o entendimento que a arte vai além do convencional,
isto é, do já estabelecido para novas perspectivas que testam a nossa
capacidade de compreensão intelectual.
A arte realiza a multiplicidade da sua essência no mundo físico por diversos meios materiais. Podemos pensar isto com base em Plotino e Dionísio, o Pseudo-areopagita, cujas ideias desses pensadores sejam para nós como uma forma de relacionar a imagem divina do Uno, ou de Deus, a natureza essencial da "ideia". Desta forma, temos em mente que a natureza da ideia está além da natureza física, e para tal vir a se manifestar no mundo é necessário que ela venha a ser representada por algo, ou se materializar em algo, e esse algo não consegue representar a ideia como um todo, pois é da natureza abstrata da ideia ser mais além do que a natureza física, vamos reforçar isto pensando como Plotino, vamos mostrar o que este pensador diz sobre o Uno no seu tratado VI 9 (9), para podermos comparar com a essência da ideia: "quando o representamos (o Uno) como uma inteligência ou como Deus, não concebemos toda a sua grandeza; mas, ainda que unifiquemos mentalmente a Deus, sempre será mais que Deus (...)" (VI 9 (9), 6: 10 – 15). Compreendemos a imutabilidade de Deus por meio dessa passagem, mas quanto a nossa da ideia? Diferente de Deus, não podemos realizar proodos (processão), isto é, gerar sem perder essência de si, portanto, a ideia no nosso caso não vem ao mundo em seu todo, porque o seu potencial se modifica com o passar do tempo, pois não somos mais que o tempo em permanência original da ideia, ou seja, o que surgiu naquele momento pode ficar no passado e se alterar no futuro; e assim também perdemos essência pura, isto é, por não sermos um ser puro e imóvel em nossa natureza, o que faz a nossa ideia ter sua natureza passível a modificações, assim tal ideia vem da nossa mente de maneira limitada, pois o clarão da inspiração, ou do surgimento da ideia, pode se modificar com a receptividade de mais inspiração do meio externo. Aqui podemos dizer que temos algo semelhante a Deus, a capacidade de gerar ou de criar, neste caso o de fazer arte, porém, o nosso meio de gerar, que é a ideia, há um porém entre o humano e Deus, um porém que diferencia no que diz respeito a capacidade de um (Deus) gerar por processão e o outro (ser humano) realizar emanação; temos a capacidade de acessar a inspiração, mas por um breve momento, porque depois essa ideia pura sofre mudanças com o tempo. Ainda assim, essa ideia é algo superior a sua manifestação no mundo físico, pois é em sua essência abstrata. No mundo físico a ideia assume múltiplas faces, em certos momentos esta multiplicidade pode nos ajudar a enxergar o ser, ou essência primária, mas só enxergamos a tal essência se fizermos o caminho da negação, igual fez Dionísio, o Pseudo-areopagita, na sua teologia negativa afim de negar toda a multiplicidade sobre Deus; deste modo, na nossa discussão sobre a ideia da arte, seguimos o caminho da negação da multiplicidade das reproduções da arte para chegarmos até a unidade primária que é a ideia. Visto então que esse é o caminho para a essência primária, vamos agora olhar o sentido da arte representada no mundo físico.
Na arte, quando vemos aquela discussão entre sensação e razão (ou compreensão, por assim dizer), acabamos por entrar em um discurso altamente valorativo e taxativo de como entender uma obra; ora, não há ordem correta para se categorizar o que se busca em uma obra. Antes vem a razão e depois a sensação, e visse e versa. Contudo, fazemos isso, fazemos distinções entre razão e sensação, damos juízo de valor para dizer que uma é superior a outra. Ninguém escapa dessa discussão. Entretanto, podemos ver que isso fica mais forte em dois tipos de arte, entre o abstracionismo e o figurativismo. Há quem diga que a primeira fica somente na razão, portanto, ela existe por buscar um significado e pode-se até dizer que tal arte não é arte pois não desperta sensações, e mais ainda, pode-se até dizer que este tipo de arte é Filosofia tentando se passar por arte; e que a outra, primeiramente, pode ficar no puro prazer estético das sensações, não necessitando de interpretações, pois o significado está na tela. Não faço tal distinção porque cada caso é um caso diante de um quadro, mas vamos ver algo desse tipo, todavia, cabe nos perguntarmos se, o espanto, surge primeiramente primeiro ao vermos uma obra, se ele vem nas sua compreensão ou no seu primeiro contato (ignorância), portanto, podemos dizer que o espanto é uma sensação, mas esta sensação surge em que momento na contemplação? A sensação é o que vem antes da razão, ou a razão vem antes da sensação? Por fim, não vejo com clareza tal coisa, pois isso está em ambas as partes da contemplação da arte, e nas duas categorias de arte existem ambas as coisas, isto é, as duas tem sensações e podem trazer reflexões. Há sensações ao se deparar com uma arte estranha, totalmente abstrata, que foge do convencional; como também há busca de significado, para além do que está estampado, na arte figurativa. Sobre a arte abstrata há um equívoco em taxar ela de sem sentido. Vejamos o famoso mictório do artista Duchamp, por exemplo, e já citado aqui.
Essa discussão da falta de sentido já entra em uma contradição, porque ao proferir que o mictório não tem sentido naquele espaço (a galeria) no qual foi colocado, o indivíduo acabou de dar um sentido ao mictório, ou seja, ele deu sentido ao que não tinha sentido ao dizer que aquilo não tinha sentido, isto é, ele acabou dando sentido ao constatar a falta de sentido daquele objeto naquele lugar, pois, ao afirmar a falta de sentido isto ressalta o sentido ilógico do objeto presente ali. Sendo mais claro, o artista se utiliza de um objeto banal, que obviamente não pertence aquele lugar, para simplesmente ressaltar a sua banalidade primária do ambiente há qual ele pertencia, e deste modo ressignificando ele nesse novo lugar, ou seja, o objeto perde a sua essência, ou aura primaria, e passa a ter um novo sentido, ou seja, uma nova essência. E o sentido está na reação daquele que observa, isto é, o resultado do novo sentido vem do estranhamento do observador ao se deparar com algo fora do comum. Mas tal sentido só é buscado depois da sensação de espanto neste caso. Aliás, não só o espanto, porque podemos sentir outras sensações com a arte abstrata, como sentir satisfação ao ver uma pintura de Juan Miró, ou se sentir hipnotizado com as pinturasbque usam a técnica conceitual de gotejamento de Pollock, ou em outra forma de arte (que é ainda mais abstrata em essência), isto é, de sentir angústia com as músicas de Schoenberg. Por que ressaltei a sensação na arte abstrata em primeiro lugar agora? Para afirmar que tal arte não é somente um produto racional, um produto feito unicamente para a reflexão.
O sentido é ressaltado por novos meios de compreender o ser do objeto e de eliminar a banalidade dele, e se faz isso para quebrar o seu engessamento original, por isso acaba por virar arte; entretanto, o sentido primário é sempre evocado para o entendimento em uma situação inicial de estranhamento, mas a arte está aí para quebrar o tal sentido primário, ao longo sa contemplação (e do entendimento) vamos compreendendo a nova aura.
Dizer que não tem sentido, é o mesmo que evocar o nada --- o que é praticamente igual há uma discussão metafísica, ou seja, podemos pensar na limitação da ciência perante a metafísica, segundo Heidegger --- nesta discussão. Entretanto, a ausência de sentido é um sentido, e por que? Porque você deu o sentido de não ter sentido. Ressaltar a ausência de sentido é igual ressaltar o nada como um ente aqui. Portanto, deve-se buscar um fator além do objeto para se dar o sentido, e aqui ressalto o caráter artístico do deslocamento dos objetos, no caso da obra de Duchamp. O indivíduo que não pode ver sentido nessa obra tem que lidar que a sua observação da "falta de sentido" complementa para o contexto, como acréscimo de sentido (ou interpretação), os outros sentidos a obra.
Um artista importante que cabe menção
aqui, como um bom exemplo do que queremos falar sobre deslocamento artístico, é
o artista estadunidense Roy Lichtenstein, que fez parte do
movimento Pop Art., ele é um exemplo que se encaixa aqui pelo motivo
que a natureza dos seus quadros são desvinculados do
contexto de uma história em quadrinhos, assim elas aparecem como imagens
frias, ou melhor, sendo símbolos ambíguos do mundo moderno. Portanto, pode se
entrar também em uma discussão que Lichtenstein se apoderou de má-fé
ou não de uma arte, pois, há de certa maneira um ressentimento por parte dos
quadrinistas, porque o deslocamento da arte dos quadrinhos por Lichtenstein é
mais considerada arte que os próprios quadrinhos, porque de
uma certa forma a indústria dos quadrinhos nunca tratou os
roteiristas e desenhistas como artistas de verdade e até mesmo o meio de
produção das revistas era algo que mais parecia uma montadora de automóveis, ou
seja, não havia interesse por parte deles, no conceito
de arte propriamente dita naquele momento; e, aliás, talvez seja essa
estrutura "industrial" e "desalmada" que
chamou atenção do artista da Pop Art., contudo, essa é uma outra discussão sobre
os quadrinistas contra Lichtenstein que renderia uma análise mais
profunda. Aqui quero apenas focar no deslocamento que mudou o sentido das
revistas em quadrinho, isto é, que mudou o sentido conceitual
das revistas na banca de jornal com o recorte de um quadro ampliado e
exposto em um museu.
O deslocamento de uma arte para um local
diferente do habitual muda o seu conceito através da receptividade do público,
como também muda o sentido pela nova perspectiva da forma, ou seja,
com a alteração do objeto primário, ou melhor, da releitura da obra; pode se
somar essas duas características com a finalidade de adaptar
a arte na perspectiva do público e assim ajudar
na receptividade, contudo, a arte parte para um devir
de sentido dependendo da situação, e da vontade criativa do artista,
assim Lichtenstein desloca
a arte dos quadrinhos criando
uma releitura da obra para um novo público.
O quadrinho já não é mais o quadrinho, porém, ele também
continua sendo o quadrinho, porque a sua essência primária agora gerou uma
nova ramificação do sentido. Um exemplo mais fácil de se notar é na música, pois é na
mudança que vemos por meio dos arranjos, da instrumentação, das reduções,
da mudança de gênero, uma alteração da essência primária. Todas elas são formas de se gerar
a mudança da essência primária da composição musical, porque ela só
pode, e precisa, de um meio para existir, por isso ela se adapta mais
facilmente a mudança, então ela continua sendo a mesma música, mas
diferente na execução, ou na reprodução.
Os objetos do cotidiano podem ser arte, afinal, só
depende da proposta do deslocamento de sentido, e da subjetividade em cima
da proposta artística, e não adianta negar ou fugir
da subjetividade na arte, afinal, essa é uma característica
humana, isso faz parte da gente, de viver por abstrações que se manifestam e que modificam os objetos na realidade. O deslocamento do objeto muda a essência do ser mantendo apenas a aparência material em alguns casos, e é por essa manutenção da aparência, que faz despertar o indivíduo da extrema cegueira na qual vivia, portanto é por meio dessa exposição que se faz revelar a essência oculta pela aparência do objeto por meio do espanto, e essa revelação gera um conflito espacial. É nesse conflito espacial onde aparece a discussão do sentido da arte.
A subjetividade artística se faz
presente em todos os movimentos históricos da arte, mesmo aqueles que
propuseram uma visão mais realista, pois, até estes tem abstrações e o uso da
subjetividade na composição das cores e na captura da essência, porque
a arte não é a realidade em si, mas apenas uma maneira de
capturar o mundo real por meio de uma expressão, sendo assim, se dois
artistas pintarem a mesma paisagem, o resultado final das telas serão
completamente diferentes um do outro. Usando outro exemplo, temos a fotografia,
o que torna esta uma arte é a forma de capturar a realidade de maneira pessoal,
é isso o que torna a fotografia uma arte, porque o
fotógrafo que é artista põe essência e estética (por meio da técnica na maior parte do seu trabalho) naquilo que registra, portanto,
é isto o que torna ele diferente do fotógrafo que
apenas capturar o momento; então a arte surge, e parte da
mudança aplicada, por meio da estética e principalmente do sentido
aplicado a fotografia.
Para refinar a explicação e deixar mais
claro para o que falarei mais adiante, utilizarei os três graus da mímesis, que
são: a ideia, a matéria e o suporte. O primeiro grau da mímesis, a ideia, se
faz presente no pensamento; portanto, a ideia nasce da mente em um
ato voluntário ou involuntário de criação; portanto, é o primeiro contato de
formação do surgimento do conceito da obra. O segundo grau se faz presente no
espaço como matéria; contudo, este é o passo onde se encontra
a performance da execução da obra, é aqui onde a ideia abstrata passa
à sua forma material, ou seja, a transferência do ser ideal ao mundo material;
entretanto, a forma material é meramente uma representação,
mas não na totalidade da ideia, onde as pessoas buscam enxergar
o ideal, mas essa busca do ideal é muita das vezes feita não de
forma racional, mas sim pelos sentidos, o que não é de todo errado, pois, cada
sensação expressa a arte. O terceiro grau, é a matéria observada no
espaço é transferida para o suporte, ou seja, o material artístico, para
ressignificar ou representar a forma real, é o que foi mais ou menos dito no
final do grau anterior. É a partir desse grau que a forma é encontrada pronta
no espaço material, por meio da arte ou da execução artística,
a forma do objeto é a representação encarnada da ideia, é o meio que
transmite a mensagem ao público, e é a partir deste ponto, isto
é, da materialidade, que surge o quarto grau. O quarto grau é a reprodução
artística, ou seja, a multiplicação da essência da ideia, é a ramificação do
ser que nasceu da abstração do pensamento para o espaço supérfluo, como também
pode ser o deslocamento da essência por entre vários espaços. Todavia, este é o exemplo que utilizo para melhor definir a captura da realidade, porém, adicionando algo a mais, por exemplo, a visão do filósofo Teodor Adorno para distanciar da mímesis, ou seja, do apenas copiar, portanto, o artista deve estar em constate necessidade de criação da novidade, isto é, a abstração pessoal do artística entra nessa questão moldar a realidade.
A expressão do
artista é adicionada a realidade como uma extensão da persona, assim ele não
cria uma cópia perfeita do mundo, mas sim a própria visão do mundo. A
subjetividade da essência da arte está nos olhos de quem observa, sente ou escuta, como também está
na intensão criativa e estética do artista, mas menos ainda porque o artista pode ter pensado apenas em uma, ou até duas, ideia(s) para tal arte. Contudo, em ambas as partes tem a subjetividade
inconsciente, ou seja, a impressão que não se expressa diretamente e que gera mais interpretações, mas essa subjetividade está mais presente no observador, ou no receptor da obra.
Posso
afirmar de forma ontológica que o ser, referindo-se ao humano como objeto
material, é um vir-a-ser em essência, nascemos
como objeto material e vamos construindo o ser no decorrer do
tempo nos limites do corpo; já no caso da arte, a construção primária do ser é o inverso,
porque ela nasce da abstração, portanto, ela é uma ideia anterior do objeto material,
assim podendo até consolidar um outro sentido de maneira posterior ao objeto material,
mas igualando a arte ao ser humano na questão do devir
formador do ser, posso dizer que o ser humano se torna autônomo de sua essência em um determinado momento de sua existência por causa de sua razão, mas isso depende de cada um, isto é, se tal indivíduo seja totalmente senhor de si, e não seja totalmente influenciado pelos outros; a arte sempre vai ter a sua essência construída pelos outros, ou seja, antes dela vir-a-ser no mundo ela já é a ideia conceitual do criador, quando é finalizada ela expõe a sua essência pura, mas que continua sendo a idéia do criador, isto é, a interpretação ou a primeira impressão do criador, e no decorrer do tempo sua essência passa por ramificações e novas traduções são geradas por causa dos outros. A arte pode mudar sua essência de sentido para uma nova forma, para além do que já foi criado materialmente, ou seja, mesmo depois da sua
concepção material a sua essência pode continuar passando por
mudanças, sendo assim diferente do ser humano, porque a arte não tem limites
físicos e temporais para a mudança da essência, pois, é ideia pura como ser, mas entendemos que essa ideia pura primeiramente necessita da matéria para vir-a-ser no mundo, e ela, a aura da ideia, sofre então na materialidade, na visão de Walter Benjamin, a reprodução da arte, mudando então o material, e também, como vimos, a ideia. Não
pense que eu nego a mudança da essência ou caráter do ser humano,
acredito que a essência da persona muda sim, porém, aqui darei uma
resposta carregada de sentido platônico, o qual utilizei no parágrafo anterior,
para dizer que o ser humano não é uma ideia pura, e com
isso ele contém limitações e imperfeições na mudança do ser por
causa da materialidade única a qual está disponível, mas também vejo uma
limitação além do material, que está no próprio ser, sendo ele o vivendo no
solipsismo, ou seja, se prender dentro de si. Contudo, na particularidade da arte, o objeto material como sua
essência primária, não deixa de existir, apenas ramifica suas novas essências
subjetivas do mesmo material abstrato primário para um
novo material.
Sobre o deslocamento de essência, chego
a uma conclusão de que a essência pode ser extraída do objeto ou
modificada, e quando digo modificada me refiro adaptada ao novo meio
que ela se encontra. A essência da arte se encontra na razão, na sensação, no vazio ou no absurdo; ela
está no sentimento ou na palavra, no belo ou no feio, porque a arte é
mais que uma mera sentença atribuída por alguém. Ditar o que é arte acaba por
reduzir a expressão do ser em um único conceito, e veja que o termo belo é um
exemplo de morfologia que não saí da gente tão facilmente, que se transformou
em uma espécie de dogmatismo artístico, e sim, me utilizarei de
Nietzsche agora para criticar o dogmatismo do belo,
pois, sustentar-se no ideal de belo estético foge da verdade que está
além, ou seja, no movimento de que está na auto-superação do ser, portanto, que
se encontra na vontade de poder da arte, isto é, para mim, é a vontade de expressão, com isto podemos dizer que a vontade de expressão está acima da aparência. Sendo assim, vejo que o dogmatismo do belo é a causa do
reducionismo da arte para um simples conceito estético, por
isso vê-se tanta gente intolerante com as vanguardas da arte,
porque o entendimento que deveria ser a chave da tolerância está reduzida
apenas ao estético superficial do belo somado
demasiadamente a sensibilidade, ou seja, a arte é
infelizmente reduzida pela maioria das pessoas a mera sentença
do belo e não havendo espaço para um pouco da razão aplicada
ao conceito, porque foi esta sentença que se espalhou ao redor
do mundo, e este pensamento foi concebido como um dogma no decorrer do tempo;
mas para ser específico, esse conceito de belo é algo
apenas ocidental, e dos grandes centros urbanos. Por isso, digo que o progresso
da civilização não é lá um grande progresso humanístico por completo,
na questão de acabar com a ignorância que leva ao preconceito, sempre
há ignorância na inteligência quando ela começa a ficar mórbida,
principalmente quando as ideias conservadoras começam a ser repassadas
ao longo do tempo sem uma crítica muito forte para chegar a todas as
esferas da sociedade. O padrão congelado do belo nada mais é que fruto do
pensamento conservador, e para mim o conservadorismo é uma covardia intelectual
quando é usado para combater o progresso artístico, porque
o conservador explora, de certa maneira, apenas a sensibilidade e
ignora a razão, e como arma contra o progresso das artes ele se
utiliza de pessoas sem conhecimento artístico ou simplesmente gente
intolerante e sem moderação.
Razão e sensibilidade, são as chaves
para a arte, porém, mas no entender das pessoas que fazem divisão de tudo, elas não andam juntas, por exemplo, ao defrontar-se com uma
obra bastante abstrata, e ao vê-la e entendê-la apenas com a razão, ela se
torna uma leitura fria e sem paixão, isto é, a razão pura não
causa sensibilidade, logo a arte perde metade
da razão da existência. O contrário se faz verdade também, uma
leitura apaixonada, ou seja, sensível, pode limar a interpretação da arte, e
com isso o observador não passa da camada mais superficial da obra, e com isso
a arte perde mais uma vez a razão da existência. Meu ponto aqui é bastante
aristotélico agora, vejo que a melhor alternativa de se entender arte é a
moderação, contudo, a moderação entre razão e sensibilidade, ou melhor, de não cairmos nos extremos dessas visões. Mas como fazer isso? Só se alcança
isso com instrução, mas é claro que isso é uma resposta idealizada, o correto
seria ao menos tentar alcançar, pois, sei que é muito difícil um terceiro mudar
a essência do ser nesta questão menor que é a razão e sensibilidade; porém,
ainda acredito na educação, e vejo que a educação pode submeter uma mudança de
certa forma no ser, portanto, uma educação moderada entre a razão e a
sensibilidade pode formar uma pessoa a ser um bom apreciador das artes. Não
penso que a moderação vá criar um elitista como apreciador, pois o elitista
está no vício da razão pura; e nem vai criar um completo amante sensível, pois
este não tem capacidade moderada de julgamento. O moderado busca entender,
compreender e sentir.
O sujeito moderado na arte ao encarar o
mictório de Duchamp, na minha concepção é claro, naturalmente deva ficar
chocado, pois, é a sensibilidade agindo, e logo em seguida vem o uso da razão
para entender a obra; porque entender é a maneira de se entrar na mente do
artista. A essência se mostra de alguma maneira, tanto pelo autor como também
pelo espectador, e com isso, digo que mesmo que Duchamp fale que o mictório não
teve sentido, o observador faz parte do processo geral da arte, isto é, ele
dará o sentido para a obra.
Portanto, de alguma maneira, no processo
geral da essência da arte o sentido vai existir, mesmo se ambas as partes
inicialmente concordem que não há sentido claro, e como disse antes, a ausência
por si só é um sentido para a arte, porque se o observador sente estranheza por
um objeto deslocado de seu espaço do cotidiano, logo cumpriu-se um dos
objetivos da arte, que é a sensação, e direi mais uma vez: cabe agora o sujeito
para além da sensação, raciocinar sobre o objeto deslocado. Contudo, a essência
da arte continuará existindo independentemente dos meios, técnicas e
pensamentos, sempre se adaptando ao comportamento da sociedade e da época. E há
uma frase do maestro e compositor Leonard Bernstein que foi dita nos famosos
concertos para os jovens, em 1968, que é assim: “A verdade é que todos os
grandes compositores libertam a música, não da escravidão dos outros
compositores, mas da rotina, da mediocridade, da tradição poeirenta; ou seja,
um grande compositor liberta a música do previsível”. Com isso, vou além da
música para a arte em geral, portanto, o grande artista é aquele liberta a
essência da arte, liberta diferentes possibilidades na obra de outros autores,
isto é, não é se apropriar porque deve haver ética em reconhecer o trabalho do
outro, e o que eu falo é que um artista pode aplicar a sua leitura a obra de
outro, é colocar um pouco de si na essência do outro, ou seja, uma simbiose
artística para se criar uma nova perspectiva. Contudo, é por novas releituras
que se tira a poeira histórica da arte, é por novas releituras que há
possibilidade de se conhecer o antigo, pois o novo apresenta o velho para a
nova geração. Na minha visão, o mundo é uma obra de arte, e nós apenas fazemos
releituras dele, assim aplicando um pouco de nossa essência nele; e é claro,
além da releitura, somos seres que criam arte, isto é, imortalizamos nossa
essência, e fazemos isso com o meio material e deixamos ela na história,
portanto, somos arquitetos da essência humana.
Texto escrito no dia (10/07/2022)
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