Considerações sobre a arte feita com Inteligência Artificial

Por Janilson Fialho

Prefácio

Uma sombra, que antes rondava o passado romântico, ainda paira no imaginário artístico contemporâneo. Ainda cremos que a "arte verdadeira" — seja ela na forma de uma escultura, uma peça musical, um texto, uma performance ou uma imagem — diz mais respeito ao processo criativo do que à peça final. O discurso desses últimos românticos afirma que não há processo criativo em simplesmente "apertar um botão" para gerar uma imagem por meio de software.

Até que eu poderia concordar com essa crítica, mas não consigo aceitar essa conclusão, pois há nela uma superficialidade e uma confusão bastante evidentes. Afinal, como posso aceitar essa crítica se sei que as vanguardas artísticas do século XX — aquelas que existiram muito antes da Inteligência Artificial —, como o Dadaísmo, por exemplo, já mostravam que a peça final era mais importante do que o processo criativo, colocando em crise o argumento que valoriza o gênio indomável, o artífice de maravilhas?

No entanto, o meu ponto de vista é, em vez de valorizar um ou outro (o processo ou a peça final), mostrar que ainda existe um processo criativo — seja ele técnico ou teórico — na criação de obras de arte tão imediatas. Mesmo com essa tentativa de síntese, apresentarei algumas considerações críticas ao uso da IA.

I - Sobre aquilo que chamamos de "Arte"

§1 - Particularidade humana. A arte é uma Particularidade humana, demasiadamente humana. Desconheço uma outra criatura que tenha a intencionalidade de fazer arte e realmente pensar que está fazendo arte, isto é, de tornar um objeto exclusivamente um ente contemplativo.

§2 - O ser é e o não-ser não é. Somente o ser humano luta por aquilo que é ou não é. Nenhum outro ser — seja ele a máquina ou animal — define ou procura uma essência escondida nas coisas; somente nós, seres humanos, nos atemos a uma disputa conceitual. Portanto, somente nós que estamos brigando nessa história de que algo é ou não é arte.

§3 - Nossa expressão simbólica. A arte está profundamente ligada à capacidade simbólica, ou seja, à aptidão de representar uma coisa por outra. Os humanos não apenas reagem ao mundo sensorial, mas o recriam simbolicamente por meio de imagens, sons, formas, narrativas e metáforas.

§4 - Arte e história. A arte não é apenas instinto ou impulso: ela é uma prática histórica. Sim, ela muda com o tempo, com os estilos, com as escolas, com os contextos sociais. Só uma espécie que possui linguagem, cultura e história pode gerar algo assim. De carregar esse peso de definir as coisas e lutar por entes metafísicos.

§5 - A expressão que tem a intenção de comunicar um sentido. A arte humana é intencionalmente criativa e comunicativa. Ela é as vezes produzida com consciência de sua forma, com objetivos estéticos, políticos, religiosos ou filosóficos. O artista pensa as vezes: "O que eu quero provocar?", "O que isso significa?". Bom, se o artista não pensou em nada disso, essa tarefa pode estar naquele que contempla a obra; é certo que pelo menos em um desses dois haverá a tarefa/intenção de comunicar a intenção da obra.

§6 - Sofisticação simbólica. A arte é um dos modos mais sofisticados da atividade simbólica: ela não apenas comunica, mas interpreta, questiona e ressignifica o mundo.

§7 - A arte como hermenêutica do sujeito. Ela é uma das formas pelas quais o ser humano reflete sobre si mesmo, sobre sua mortalidade, suas paixões, seus medos, suas memórias e seus sonhos. Desde as pinturas rupestres de Lascaux até as instalações contemporâneas, a arte expressa uma autoconsciência que é exclusivamente humana.

§8 - A arte como resposta existencial. Nos expressamos pela arte como uma forma de resposta ao absurdo da existência, ao sofrimento, à morte — e essa resposta é especificamente humana.

§9 - A arte e o Divino. A arte sempre esteve profundamente ligada ao Divino, funcionando como uma ponte entre o visível e o invisível, o humano e o transcendente. Desde as pinturas rupestres até os vitrais das catedrais medievais, a criação artística foi uma forma de expressar o sagrado, representar deuses, rituais, mitos e experiências espirituais. Mais do que ilustrar o divino, a arte o invoca, o encena, o torna sensível. Nesse sentido, o fazer artístico é muitas vezes uma espécie de oração estética, uma tentativa humana de tocar o mistério e dar forma ao indizível.

II - Sobre a natureza e a tecnologia

§10 - Arte e natureza. Embora alguns animais façam objetos ou comportamentos que podem parecer "estéticos" — como o ninho do pássaro-jardineiro ou as danças de acasalamento —, não há evidência de que façam isso com a intenção de expressar conceitos ou experiências existenciais. Um pôr do sol é belo esteticamente, mas somente nós que conseguimos definir se ele é ou não é uma obra de arte.

§11 - Deslocamento. Somente nós, seres humanos, conseguimos deslocar os fenômenos da natureza ao campo da arte, conferindo-lhes significado simbólico e estético. Se um raio atinge uma árvore e deixa em seu tronco uma marca que lembra a imagem de uma capivara, o acontecimento em si é puramente natural — sem intenção, sem direção estética, sem propósito comunicativo. No entanto, é a sensibilidade humana que percebe essa semelhança, interpreta a forma e transforma o acaso natural em imagem artística ou poética. É o olhar humano que enxerga beleza, metáfora, narrativa ou expressão onde só havia matéria e causalidade. Ao nomear, interpretar e comunicar essa visão, o ser humano realiza um gesto estético que vai além da biologia ou da física: ele cria arte a partir da natureza, elevando o acidente natural à condição de símbolo. É esse poder de transfiguração simbólica que torna a arte uma atividade exclusivamente humana. É assim que o ser humano faz da pedra no meio do caminho um poema.

§12 - Arte e tecnologia. A Inteligência Artificial não tem consciência de que faz arte, pois não possui subjetividade, intencionalidade ou experiência própria. Ela produz imagens, sons ou textos com base em padrões de dados, mas sem entender ou sentir o que cria. Diferente dos humanos, que expressam emoções, ideias e visões de mundo por meio da arte, a IA apenas simula processos criativos, sem consciência, intenção estética ou reflexão sobre o sentido do que produz. Carece a ela um corpo sensível.

§13 - A máquina faz e o ser humano essencializa. Não se engane: a IA faz arte, isto é verídico, mas somente eu ou você que podemos dizer se é ou não é arte.

III - O Contexto Capitalista e a Ilusão da Inovação

§14 - Uma novidade antiga. Sob o capitalismo qualquer coisa — seja ele um conceito ou um objeto — é passível de ganhar uma nova embalagem, por exemplo: o que antes era chamado de exaustão, hoje ganhou o nome de Burnout; o que antes era apenas um software operando, hoje chamamos de "Inteligência artificial". Esse nome causou um verdadeiro alvoroço midiático. A imagem da tecnologia se renovou no imaginário coletivo. Tudo agora que se refira à tecnologia se usa a palavra "Inteligência Artificial". Mas sejamos honestos: não há nada de novo realmente (talvez uma atualização aqui, outra ali), mas apenas o nome se mostra como algo surreal (a verdadeira novidade). E por isso dizemos: temos velhas novidades rondando o mercado como se fosse algo realmente inédito, como se antes não houvesse uma tecnologia desse tipo.

§15 - Contradição da propriedade. A Inteligência Artificial se encontra em um dilema: ao mesmo tempo que os seus proprietários a protegem do uso indevido dos usuários (a famosa proteção contra a pirataria), esses mesmos proprietários da IA violam a propriedade intelectual dos artistas, escritores, intelectuais, etc. O burguês precisa de um espelho para olhar para si mesmo, nessa história ele também está usando um tapa-olho e um papagaio no ombro.

§16 - Apropriação indevida. A memória da máquina é alimentada de modo indiscriminado. Oartistas reais sofrem com a cópia de sua propriedade intelectual sem nenhuma forma de compensação financeira. A IA lucra com o acesso e a miséria dos artistas e pensadores.

§17 - O leigo como artistaÉ inegável que qualquer um hoje pode gerar uma arte com a Inteligência Artificial. Basta descrever (com muito ou poucos detalhes) uma cena e depois "apertar um botão", assim, em poucos segundos, algo visualmente impactante surge. O problema não está no acesso — afinal, "democratização" da ferramenta é, em si, positivo —, mas sim na falsa equivalência entre "produzir imagem" e "fazer Arte". Quero deixar claro que o problema também não está na obra em si, quero me dirigir tão somente ao processo de criação. A IA não exige domínio técnico, reflexão estética, repertório simbólico ou qualquer enfrentamento com o vazio criativo. Ela também não exige o uso exclusivo dos devotos da arte. O leigo, empoderado pela ferramenta, não precisa aprender a pintar, compor ou escrever, ou simplesmente saber o mínimo de arte: para a IA basta apenas pedir — e esse pedido não é sinônimo de querer fazer algo pensando em ser uma "obra de arte".

IV - A Máquina no Lugar do Sujeito

§18 - Alienação do fazer ao instrumento. O "fazer" é fruto do "querer", portanto, se quero fazer eu devo fazer, mas, se eu não posso realizar o meu desejo de fazer, logo alieno ele (agora em forma de carência) a algo ou alguém capaz de realizá-lo; a alienação do "fazer artístico" agora se concentra no fazer da máquina e não mais na intencionalidade humana.

§19 - A Inteligência artificial como ferramenta. Lembremo-nos dessa sentença: a IA é uma ferramenta! Não se esqueça disso.

§20Submissão a máquina. A máquina parece tão segura e por isso ela parece ser a expressão atual do que chamamos verdade, assim pensamos, por isso depositamos nela a nossa confiança. Nós nos curvamos ao império do algoritmo. Somos submissos aos seus resultados, tomamos como sagrados.

§21 - A palavra final da máquina. A IA não fala por si só, porque ela não tem consciência própria, ela apenas repete o que foi programado em sua memória virtual. Até as máquinas são doutrinadas. O pior de tudo é o ser humano que aliena seu conhecimento a um ser alienado que não sabe (e nem pode saber) que é essencialmente alienado. A palavra final fica sob o encargo de um software que fornece informações superficiais. Lembre-se: essa máquina é uma ferramenta e não um oráculo, suas respostas devem ser consideradas com cautela e criticidade, não com confiança.

§22 - A decisão final da máquina. O sujeito não tem ideia do que fazer — eis o problema —, mas para essa situação a única ideia que lhe ocorre é a alienação completa do seu projeto a IA. Assim, lá vai ele pôr nas mãos dessa ferramenta a total liberdade de decisão. Pobre alma sem ação própria.

V - A Crise da Autoria e da Subjetividade

§23 - Dupla autoria. Nunca vi um pintor dividir os créditos de sua obra com seus pincéis, assim como nunca vi um escultor, escritor ou compositor dividir a autoria com suas ferramentas de trabalho; então por que os artistas que usam a Inteligência artificial dividem sua autoria com ela — "eis a obra de fulano usando IA!". A palavra "usando" não me passa nenhuma sensação de que a IA é vista como um instrumento, mas que ela tem o mesmo peso do autor.

§24 - Sobre a menoridade do usuário de IA. A velha raposa de Königsberg tinha razão sobre o problema da "menoridade intelectual". Essa triste condição diz respeito ao indivíduo ser incapaz de usar a própria razão para tomar decisões, e sempre depender da orientação dos outros. Vejo nos usuários de IA essa mesma incapacidade de pensar e agir de forma autônoma, preferindo seguir a autoridade da máquina. O problema não está no uso da ferramenta, mas na falta de coragem e decisão para usar o próprio entendimento ou julgamento estético no "fazer arte" (ou em qualquer outra atividade). Ainda falta um "esclarecimento" na consciência desse usuário.

§25 - A morte da personalidade do artista ou O novo insensato. Não ouviram falar daquele insensato que, em pleno meio-dia, acendeu o seu celular, correu as redes sociais e começou a digitar em caixa alta:

— "PROCURO O ARTISTA! PROCURO O ARTISTA!".

Os que ali estavam online começaram a zombar  dele, e comentavam na sua postagem assim:

— "Perdeu o emprego pro algoritmo?" — perguntava um.

— "Será que ele não se atualizou ao novo sistema?" — dizia outro.

— "Será que o artista virou prompt?" — riam um terceiro.

O insensato saltou entre eles em sua presença virtual e espetou os olhos nos que zombavam:

— "Aonde foi o artista? — respondeu o comentário — Direi a vocês. Nós o matamos (vocês e eu). Somos todos seus assassinos. Mas como o fizemos? Como pudemos arrancar dele o pincel e entregar ao código o gesto criador? O que era humano, orgânico, errante (tornamos vetor, ajuste de saturação, e output em PNG)."

"O que éramos nós quando ainda havia o artista? Criaturas diante de uma centelha. E agora? Como nos consolaremos, nós, os que retiraram a centelha da carne e a projetaram no silício?"

"A IA ainda cria? Sim! Mas quem sonha com ela? Onde está a angústia? Onde está a febre de quem arrisca a alma na obra? Será que o artista fugiu? Será que se escondeu entre as linhas de código para nos observar anonimamente?"

E então, em silêncio profundo dentro de seu quarto solitário, o insensato voltou-se para o céu virtual e exclamou:

— "Ainda é cedo demais para a arte feita por humanos. Ela está ausente. Em repouso. Talvez exilada nos rascunhos. Mas um dia retornará — talvez com outra face, talvez com uma assinatura ilegível, talvez... com um novo nome."

Dizem que o insensato entrou em outras páginas de galerias digitais, apagou NFTs, subverteu algoritmos e, ao sair, murmurou:

— "Aqui repousa o artista. Até que o humano ouse novamente criar sem pedir permissão ao prompt."

§26Inferioridade perante a máquina. Assim o sujeito pensa: "será que a IA faria algo melhor do que eu já fiz?". Por fim ele chega em uma conclusão: "sim, ela com certeza faria.".

VI - O Tempo, a Pressa e a Estética Perdida

§27 - Ausência de tempo. A pior desgraça dos nossos tempos é o desaparecimento de todos os processos de criação ou desenvolvimento de algo ligado ao tempo. O ser não se encontra em seu pensar dentro da esfera do tempo. O instante está tomando o ser.

§28 - Tempo e desenvolvimento. Eis a força motriz da história artística: o tempo! O tempo não é um luxo para o artista — é seu chão ontológico. Toda criação demanda duração, não apenas cronológica, mas existencial. Criar é estar, permanecer, demorar-se. Não se trata de produzir sob a tirania da eficiência, mas de habitar um intervalo onde a forma ainda não é, mas pode vir a ser. A obra nasce nesse entre-tempo: entre o impulso e o gesto, entre o caos e o contorno, entre o silêncio e a linguagem. O tempo da criação não se submete ao calendário nem ao relógio; ele é interno, espesso, às vezes opaco. A arte só se realiza quando o artista dispõe do tempo não como recurso, mas como condição. Sem esse tempo, o pensamento não amadurece, a intuição não se escuta, a linguagem não se revela. O que se nega ao artista não é apenas o tempo para fazer, mas o tempo para ser — e sem ser, não há criação possível.

§29 - A velocidade de produção. Quando a arte corre na velocidade da máquina, o instante cala o silêncio da criação — e o tempo deixa de fermentar o sentido.

§30 - Produzir, sempre produzir, não deixar de reproduzir. Na febre de produzir, a arte desaprende a pausar. Transforma-se em esteira: desliza, repete, mas não caminha.

§31 - A falta de avaliação estética. Na arte feita com inteligência artificial isso não é apenas um descuido; é um sintoma de nossa época que confunde quantidade com valor. A produção se torna um fim em si mesma, e a estética, reduzida a filtros ou métricas de engajamento, perde seu papel crítico e sensível. A IA, quando usada sem reflexão, tende a replicar padrões, não a rompê-los. E muitos que se propõem “fazer arte com IA” não a interrogam, apenas a operam — não criam, automatizam. Falta-lhes o gesto do juízo, o risco do olhar que hesita, o silêncio necessário ao surgimento de uma forma. Sem avaliação estética, não há obra: apenas ruído que se veste de imagem.

§32 - A velocidade de fruição. O consumo imediato tomou o lugar da contemplação vagarosa da fruição. Para onde foi o nosso "demorar-se" na beleza? Em que lugar se esconde o "permanecer hipnótico"? Onde permanece o nosso olhar desarmado que congela o tempo? Direi a causa que corrompeu o puro singelo da arte! O que esgotou essa força foi máxima atual — muito parecida com a que vismos anteriormente — do "consumir, sempre consumir, nunca deixar de consumir". Estamos consumindo não pela satisfação ou experiência da obra, mas por uma obrigação externa; uma obrigação vinda, por exemplo, das recomendações dos influenciadores, estes nos jogam a responsabilidade de ver e ouvir listas, e mais listas e mais listas de obras "necessárias" para ser um "verdadeiro" apreciador de artes. No entanto, o problema mesmo não está nisso, afinal, uma recomendação é algo bom, mas está na "performatividade" por trás do consumo de arte. O consumo é o problema! Além disso, querer atingir metas de consumo para depois colocar nos Stories daquilo que vimos ou ouvimos é simplesmente uma alienação estética. Nessa necessidade performática não há tempo, ele foi sacrificado, porque temos que cumprir a meta (a lista que recebemos ou fizemos). Nessa necessidade performática nada deve ser tão longo: os livros são de poucas páginas, os filmes são assistidos em velocidade aumentada, as músicas não deve passar de 3 minutos e prefere-se ler um resumo sobre uma obra de arte do que contemplar ela. A ausência de tempo é a morte da experiência estética.

§33 - Paciência. Para onde se extraviou a nobre e bela paciência que habitava a essência humana?

§34 - O coração máquina. O ser humano pós-moderno é cordial, instalou no peito uma máquina, e agora pulsa no ritmo da produção — já não escuta o sopro das coisas simples que vem do coração, nem a beleza daquilo que é puro e singelo que sussurra, baixo, entre os silêncios do mundo.

VI - Vício, Dependência e Desorientação Crítica

§35 - A resposta da máquina. Quanto mais a máquina responde, menos nos perguntamos.

§36 - Necessidade incontrolável de usar a IA. Surge no artista ou no pensador um novo vício: querer usar a IA o tempo todo e em toda sua produção. Queremos saber o que a IA poderia fazer em nosso lugar, para se sua resposta ou arte é tão melhor quanto a que podemos conceber. Sendo bem sincero: digo que quero usá-la por curiosidade ou por necessidade. Mas tenho medo deuero usá-la o tempo todo. Quero criar um texto perfeito ou uma arte em tão pouco tempo para exibir no meu Stories. Não sei porque preciso dela, mas acabo usando-a assim mesmo.

§37 - O vício de poupar esforço. A inteligência artificial não vicia por ser inteligente, mas por nos poupar do esforço de pensar.

§38 - Eficiência como embriaguez. A dependência da IA é a embriaguez do comodismo travestida de eficiência.

§39 - Reflexão crítica. Para onde foi nossa reflexão crítica? Talvez tenha se diluído na fluidez das respostas instantâneas — como se pensar pudesse ser terceirizado, e a inquietação trocada pelo conforto de um algoritmo que responde, mas não duvida.

§40 - Sugestões. Não mais criamos — apenas escolhemos entre sugestões. E nesse abismo, afunda-se a vontade.

§41 - Entrega da imaginação. Quem entrega sua imaginação ao algoritmo, não percebe quando sua autonomia se desfaz em prompts.

VII - Impactos na vida Artística

§42 - Precarização do trabalho artístico. Hoje, no nosso mundo digital, a precarização do trabalho artístico na era da inteligência artificial não se limita à substituição de mãos humanas por algoritmos. Ela se dá, de modo mais sutil e devastador, na desvalorização da experiência estética como processo encarnado, subjetivo, sofrido. A IA produz imagens, sons, textos — mas sem corpo, sem história, sem ferida. E, no entanto, é celebrada como eficiente, incansável, barata. O artista, por sua vez, vê seu labor reduzido a um custo dispensável, sua criação comparada a uma saída automática. A precariedade aqui não é apenas a perda do sustento, mas a erosão simbólica do papel do criador: de portador de visão a operador de prompts. Quando o humano é substituído sem lamento, o que se precariza não é só o trabalho, mas o próprio sentido de criar.

§43 - A morte do artista. Confirmo essa fatídica observação: o artista morreu — e não houve vela, apenas mais arquivos de dados sobre essa tragédia. Ninguém notou seu adeus, pois a máquina ainda produzia. Mas quem chorará no futuro por aquilo que já não sente ao criar?

§44 - A arte morreu?A morte da arte, proclamada diante do advento da inteligência artificial, não passa de um eco apressado de nossos temores mais profundos diante do inusitado. Confunde-se o automatismo da forma com a potência do gesto criador, esquecendo que a arte, em sua essência, não reside apenas na técnica, mas na tensão entre o finito e o indizível. Será que há uma substituição do processo de criação? Não, isso não implica necessariamente em uma extinção nesse sentido. Não há substituição, nem superação; a existência dessa nova ferramenta não significa o desaparecimento das outras artes ou que os artistas de outras artes vão abandonar suas técnicas para dedicar-se a tecnologia. O que se anuncia como fim, em verdade, não é nem uma metamorfose ou uma superação, mas uma alienação do fazer arte e da autoria das obras a um limbo de não pertecimento. A existência da inteligência artificial apenas desloca o campo de batalha: não mais entre tinta e tela, ou se é ou não é arte, mas entre o direito a própria obra. É contra o desaparecimento da autoria que a arte deve resistir — é essa a discussão que não deve ser silenciada. No mais, a vontade de expressão do ser humano não morrerá.

VIII - Uma estética artificial para um mundo digital

§45 - Uma nova aurora. Anuncio a vós o evento histórico de nossos dias! Uma nova aurora desponta na arte — não para sepultar o que veio antes, mas para multiplicar os sóis sob os quais o espírito humano continua a criar, agora com máquinas como espelhos e pincéis.

§46 - Uma pergunta sincera. A estética artificial inaugura uma forma visual: não mais o olho do artista, mas a lente da máquina. Porém, a questão permanece filosófica — não sobre o que é arte, mas sobre quem deseja vê-la assim. Quando a criação se automatiza, resta-nos perguntar: quem sonha por nós agora?

§47 - A nova fase da arte digital. A inteligência artificial inaugura não um rompimento definitivo com a tradição, mas só mais um gesto artístico. Nesse momento, onde se agita nos ares, o estatuto da autoria se dilui, a intuição cede espaço à previsão, e o ineditismo se enreda em padrões estatísticos. A IA é o reflexo de um tempo onde a sensibilidade se negocia com o cálculo.

§48 - A estética onírica da IA. Os vídeos gerados por inteligência artificial habitam um território estético próximo ao do sonho — uma continuidade espectral da arte surrealista. Como nas telas daqueles pintores do início do século XX, neles o real se dissolve em um tecido de imagens que flutuam entre o possível e o delírio. Nos vídeos da IA as imagens se mesclam, se transformam e geram situações absurdas.

§49 - A visão que enxerga o artificial. Uma das preocupações com a IA era confusão que ela iria causar entre o que era real e falso. O que vemos é que o engano se perpetua mais entre os mais velhos, porque para os mais jovens — que estão acostumando a vista ao que é feito pela IA — já se percebe a diferença entre um e outro. Ainda devemos dizer que a visão do jovem se acostuma por causa do excesso de tela — paradoxo contemporâneo: o desenvolvimento da visão é acompanhado pela cegueira.

§50 - Ultima questão. A arte feita com IA encarna o paradoxo do sublime contemporâneo: é grande demais, precisa demais, mutante demais. Diante dela, não sentimos a vastidão do mundo, mas a vastidão do algoritmo. É a estética do excesso: hiperestimulada e hipnotizante, mas, ao fim, como enxergar o ser humano e o mundo por trás da cortina digital?

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