Entre o Real e o Esquecido: Um Ensaio sobre Espaços Liminares e o Eco da Solidão

Entre o Real e o Esquecido: Um Ensaio sobre Espaços Liminares e o Eco da Solidão

Por Janilson Fialho 

I. Espaços Liminares: Memória, Transição e Esvaziamento

Espaços liminares são fronteiras emocionais e físicas entre o que foi e o que ainda não é. São lugares que perderam sua função original e, por isso, evocam sentimentos ambíguos: desconforto e familiaridade, vazio e presença. Um quarto antes habitado por dois irmãos, onde um deles faleceu, torna-se exemplo contundente. O espaço permanece, mas sua alma se ausentou. Agora, a cama vazia denuncia o silêncio do luto, transformando aquele cômodo em um limbo onde a vida estagnou.

A definição moderna desses espaços, como destaca o site In a Liminal Space, aponta para momentos de espera, zonas de transição onde algo foi deixado para trás sem que o próximo tenha começado. Escadas, corredores, aeroportos, escolas vazias — todos compartilham essa qualidade de suspensão. Eles não são destinos, mas passagens que adquirem estranha autonomia quando desprovidas de fluxo humano. Tornam-se, paradoxalmente, portais entre mundos: nem aqui, nem lá.


Marc Augé, em Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade (1992), teorizou esses espaços impessoais como zonas de trânsito e anonimato. No entanto, o espaço liminar vai além: é impregnado de afeto ausente, de um passado que insiste em ser lembrado. Se o não-lugar é o símbolo da funcionalidade moderna, o espaço liminar é seu duplo espectral, carregado de saudade e estranheza. Não apenas passamos por ele — somos assombrados por sua ausência de propósito.


A arte, naturalmente, encontrou nesses espaços um espelho para os estados interiores de angústia e deslocamento. O episódio inaugural da série The Twilight Zone exemplifica isso ao lançar seu protagonista em uma cidade deserta, onde nada parece errado, exceto a ausência total de pessoas. É o incômodo de ver o mundo intacto, mas esvaziado de significado. A ausência não é destruição: é excesso de lembrança, silêncio que grita.

Nesse sentido, afirmar que espaços liminares são apenas memórias distantes é mais que poético — é preciso. Eles condensam a dor da passagem do tempo e o desconcerto diante do presente suspenso. Funcionam como cápsulas do que fomos, nos fazendo perguntar: “e agora?” Ao habitá-los ou apenas vê-los, revisitamos a nossa própria transitoriedade.


II. A Estética da Nostalgia e o Vazio nas Imagens

A estética liminar tem fascinado criadores e públicos. Eu mesmo sou completamente atraído por essa estética, até cheguei a compor uma série de peças com o título "Normose" (opus 44) sob influência dos espaços liminares. A internet, com fóruns como o r/LiminalSpace, popularizou imagens de centros comerciais vazios, escolas abandonadas e corredores sem destino. São espaços que poderiam ser familiares, mas cuja solidão desumanizada nos causa arrepio. Neles, o tempo parece paralisado, e o espectador é lançado num transe entre o reconhecimento e o estranhamento. A familiaridade sem função é o que produz o sentimento de deslocamento.



Edward Hopper, mestre do realismo moderno, antecipou essa sensibilidade. Suas obras retratam figuras humanas isoladas em cenários urbanos — bares, quartos, postos de gasolina — carregados de uma melancolia quase tangível. Em Automat (1927), uma mulher sozinha encara o café, mergulhada num silêncio psicológico. Em Gás (1940), a solidão do frentista é amplificada pela vastidão do ambiente que o cerca. As figuras humanas que aparecem nesses espaços são retratos dos estados de espírito do ser humano moderno: solidão, introspecção e desencaixe.

O pintor retrata os nossos tempos mortos que abrigam o tédio existencial, os olhares vazios, a falta de comunicação, de expressão e a espera interminável do que não se sabe. São momentos perdidos, transitórios e eternos, em que os personagens existem em um tênue equilíbrio com a essência do espaço, isto é, as pessoas que estão retratados naquelas cenas existem, mas ao mesmo tempo não existem — o espaço continua vazio de presença, apesar de haver uma presença ali.

Automat - Edward Hopper 

Gás - Edward Hopper

Essas obras, como Nighthawks (1942), se tornaram ícones de uma estética do isolamento. A cena noturna em um restaurante, capturada por Hopper, é tanto sobre o espaço físico quanto sobre a ausência de conexão entre os presentes. A transparência do vidro separa o espectador das figuras, que não interagem entre si. Há uma proximidade corporal e um abismo emocional. Hopper pintava o limiar entre o urbano e o íntimo, entre o coletivo e o solitário.

Nighthawks - Edward Hopper

O fascínio contemporâneo pelos espaços liminares talvez se intensifique após eventos que marcaram coletivamente a experiência do vazio — como a pandemia de COVID-19. Durante o isolamento, o mundo real se esvaziou. As ruas ficaram desertas, os sons diminuíram. Muitos se viram em espaços que antes eram rotineiros, mas agora transpiravam uma quietude desconcertante. Assim, os limiares físicos se tornaram também estados psicológicos compartilhados.

O espaço liminar, portanto, é mais que um cenário: é uma linguagem. É um meio de expressar o que as palavras não conseguem: a perda de significado, o tempo congelado, a nostalgia por um mundo que talvez nunca tenha existido. É um lugar onde o real se funde com o onírico, como um sonho que se lembra mal, mas que insiste em retornar.

III. Jogos, Ficções e o Ciberespaço do Desamparo

Nos videogames, a exploração dos espaços liminares é cada vez mais frequente, especialmente nas produções independentes. Títulos como S.T.A.L.K.E.R., Silent Hill e até o sandbox Minecraft, quando abandonado, tornam-se ambientes espectrais, ruínas digitais da presença humana. Voltar a um servidor vazio é confrontar a ausência de vozes conhecidas, de construções interrompidas, de uma comunidade que já não existe. É uma arqueologia afetiva do vazio.

As "Backrooms", popularizadas por creepypastas e vídeos no YouTube, representam uma evolução desse conceito. Elas são corredores infinitos, iluminados por lâmpadas fluorescentes, cobertos de carpete amarelo e impregnados por um zumbido contínuo. Ali, o desconforto é constante. Ao contrário dos espaços liminares nostálgicos e suaves, as Backrooms são mais hostis. Elas não apenas evocam saudade: distorcem a realidade e brincam com a sanidade.


Essa diferença é fundamental. Enquanto os espaços liminares comuns oferecem uma aura de acolhimento e desconforto equilibrados, as Backrooms se aproximam de um inferno burocrático, uma distopia sutil. São o negativo do lar: tão familiares quanto perturbadores, tão seguros quanto ameaçadores. Representam o medo de ficarmos presos em um espaço que não nos quer, mas que também não nos rejeita. É a prisão do indiferente.

Por outro lado, plataformas como o Metaverso e MMORPGs também operam como espaços liminares. Não se trata apenas de jogos, mas de mundos inteiros que transitam entre o real e o virtual. Quando esses espaços são abandonados, resta apenas o esqueleto digital: avatares congelados, paisagens vazias, NPCs repetindo falas para ninguém. O silêncio dessas paisagens é semelhante ao das cidades abandonadas – ecoa o que fomos, o que vivemos ali, o que já não somos.


Esses cenários virtuais oferecem uma nova forma de memória: a nostalgia digital. Não é mais o parque da infância ou a casa dos avós, mas o mundo que habitamos por trás da tela. Ao revisitar um jogo inativo, sentimos o mesmo vazio do quarto onde alguém partiu. Somos assombrados pelo que não está mais lá — e pelo que ainda lembra que um dia esteve.

IV. O Tédio Existencial e a Lógica da Solidão

Søren Kierkegaard, filósofo dinamarquês, entendia o tédio como um estado existencial profundo. Para ele, trata-se de uma sensação de vazio ontológico, onde nada parece ter sentido. Não é apenas uma falta de ocupação, mas a ausência total de desejo. Daí sua potência destrutiva. O tédio é o prenúncio do niilismo: quando o mundo perde suas cores e o tempo deixa de correr.

No contexto dos espaços liminares, o tédio não é somente consequência — é motor. É ele que nos impulsiona a procurar significado nos lugares vazios, nas imagens estáticas, nas ruas desertas. É a tentativa desesperada de encontrar algo no nada. Blaise Pascal já havia identificado essa busca como fuga da “tristeza insuportável” do tédio: buscamos distrações, ruídos, qualquer coisa que nos salve de nós mesmos.

A solidão, outra face desse sentimento, é talvez o que define mais profundamente a experiência liminar. Estamos sós, mas em meio a estruturas que foram feitas para estar cheias. Somos um corpo deslocado em uma geografia de fantasmas. Edward Hopper entendeu isso como poucos: suas figuras humanas não estão apenas sós — estão separadas do mundo por um vidro emocional. Observam e são observadas, mas jamais tocadas.

Na era da supermodernidade, como explica Marc Augé, somos conduzidos por não-lugares onde a relação é sempre contratual: um bilhete, um cartão, um passe. A subjetividade se esvai em favor da função. Os espaços liminares são resistência a isso: são o resíduo subjetivo deixado pela função que cessou. Eles guardam os fantasmas da experiência. Por isso, ao nos confrontarmos com eles, sentimos não apenas nostalgia – mas a dor do esquecimento.

O tédio e a solidão não são inimigos do espaço liminar, mas seus cúmplices. Eles preparam o terreno para que possamos ver no vazio o que nunca foi dito, o que passou despercebido. Um elevador parado, uma sala de aula vazia, uma estação deserta — tudo pode ser um espelho. E, ao olhar nesses espelhos, nos vemos desfigurados, fragmentados, irreconhecíveis.

V. Conclusão: O Espaço Liminal como Imagem da Condição Humana

Os espaços liminares capturam o espírito de uma época em que tudo parece transitório. Eles são metáforas vivas da modernidade líquida, onde nada é sólido, permanente, confiável. Entre a memória e o esquecimento, entre a presença e o abandono, eles revelam mais sobre nós do que gostaríamos de admitir. São as ruínas de um mundo que não terminou, mas também não começou de novo.

Neles, a estética do silêncio encontra a potência da imagem. Fotografias, pinturas, ambientes virtuais – todos capturam a aura espectral do que já foi. O apelo dessas imagens não é meramente visual, mas existencial. Elas nos tocam porque reconhecemos nelas a fragilidade de nossa própria história. Estamos todos, de alguma forma, suspensos entre o que perdemos e o que ainda não chegou.

Talvez por isso, hoje, mais do que nunca, sejamos atraídos por essas imagens. Em uma era onde tudo parece ter perdido seu sentido profundo, os espaços liminares nos oferecem um refúgio – não de conforto, mas de verdade. Eles não prometem segurança, mas honestidade. São lugares onde é possível sentir, mesmo que se trate apenas de ausência.

Afinal, como Edward Hopper nos mostra, a solidão pode ser bela – e necessária. E como Kierkegaard nos lembra, o tédio pode ser o solo fértil onde nascem as grandes perguntas. Entre o brilho fosco da nostalgia e o silêncio das paredes vazias, encontramos a possibilidade de um pensamento profundo, de uma reconexão com a condição humana.

Em última instância, os espaços liminares não estão fora de nós – somos nós. Nossos medos, nossas ausências, nossos sonhos mal lembrados. Eles são o espelho onde vemos, por fim, aquilo que não passa: a angústia de existir.

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