O Que É Arte? Entre Ready-Mades, Ícones e Provocações
Por Janilson Fialho
A pergunta “o que é arte?” atravessa séculos de reflexão estética, mas nunca foi tão violentamente lançada quanto no gesto radical de Marcel Duchamp ao apresentar, em 1917, um mictório como obra de arte. Batizada de A Fonte e assinada com o pseudônimo “R. Mutt”, a peça não tinha intenção de agradar visualmente nem de ser compreendida como bela ou sublime — ela existia para confrontar, desconstruir e ironizar os valores da arte institucionalizada. Era, em essência, um gesto dadaísta: negar a arte por meio da própria arte.
O Dadaísmo surgiu em um contexto de crise. Após o horror da Primeira Guerra Mundial, muitos artistas perceberam que os ideais de progresso e racionalidade, antes associados à arte e à cultura europeia, haviam falhado em impedir a barbárie. A resposta dadaísta foi o escárnio. A estética do absurdo, do improviso e do deboche buscava não apenas questionar o conteúdo da arte, mas a própria estrutura que a sustentava: os museus, as galerias, os críticos, o mercado.
Duchamp, com seu "ready-made"¹, deslocou o objeto cotidiano para o espaço sagrado da galeria. Esse deslocamento exigia do público não uma contemplação estética, mas uma atitude crítica. O objeto perdia sua função original — o mictório deixava de ser mictório — para tornar-se linguagem. Era uma provocação direta: se aceitarmos isso como arte, então qualquer coisa pode ser arte; e se recusarmos, com base em quê o faremos?
Ao fazer isso, Duchamp desafiava o ideal romântico do gênio criador e, ao mesmo tempo, a tradição moderna da obra original. Afinal, o mictório não foi criado por ele, mas escolhido. Ele não tinha valor técnico ou artesanal; seu “valor” era conceitual. O gesto era mais importante que o objeto. Como o próprio Duchamp afirmou, o ready-made não é feito para agradar os olhos, mas para provocar o pensamento. Ele não busca o belo, mas o enigmático.
Duchamp ainda subverte o conceito de autoria, uma das colunas centrais do sistema artístico. Hoje se sabe que A Fonte pode ter sido idealizada por Elsa von Freytag-Loringhoven, artista dadaísta igualmente radical, mas apagada pela historiografia oficial. Essa disputa pela autoria revela o quanto a arte ainda depende de narrativas hegemônicas para legitimar seu valor. A ideia de que uma obra perde valor se for atribuída a uma mulher pouco conhecida é, por si só, uma crítica viva ao elitismo da arte moderna.
Por fim, a questão que Duchamp levantou em 1917 continua atual. Em um mundo saturado por imagens, performances e objetos artísticos dos mais diversos, o que nos permite ainda distinguir o que é arte do que não é? A resposta talvez não esteja na natureza do objeto, mas na experiência que ele mobiliza. Se a arte já não é mais aquilo que se contempla em silêncio, mas o que nos desafia a pensar, então o gesto de Duchamp permanece vivo — não como provocação gratuita, mas como um convite à consciência crítica.
¹ "Ready-made", em português, significa "pronto para uso" ou "objeto pronto". Esse conceito artístico que consiste em um objeto de produção industrial, selecionado e apresentado pelo artista como obra de arte.
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