A vida não é útil - Ailton Krenak

A vida não é útil - Ailton Krenak

Por Janilson Fialho

1. A compreensão crítica de “humanidade” para Krenak

Para Ailton Krenak, a noção de “humanidade” não corresponde apenas ao Homo sapiens, mas sim a uma diversidade de seres e formas de vida que vêm sendo sistematicamente excluídos pelo projeto civilizatório moderno. Ele critica fortemente a ideia de uma "humanidade" exclusiva, elitista e antropocêntrica, que se separa da natureza e elimina aquilo que não cabe em seu ideal de progresso. Segundo ele, “Quando falo de humanidade não estou falando só do Homo sapiens, me refiro a uma imensidão de seres que nós excluímos desde sempre: caçamos baleia, tiramos barbatana de tubarão, matamos leão e o penduramos na parede para mostrar que somos mais bravos que ele” (KRENAK, 2020, p. 7). Essa crítica revela uma humanidade que se vê como superior e dominante, cuja existência tem sido marcada pela destruição do outro — seja ele animal, vegetal ou até humano considerado inferior, como povos indígenas, quilombolas e caiçaras.

Um dos exemplos que ilustram essa compreensão crítica é a metáfora do “clube exclusivo da humanidade”, em que: “foram devastando tudo ao seu redor. É como se tivessem elegido uma casta, a humanidade, e todos que estão fora dela são a sub-humanidade” (p. 7). Aqui, ele denuncia a construção de uma hierarquia dentro da própria espécie humana, onde apenas alguns são reconhecidos como “humanos plenos”, enquanto os demais são marginalizados e descartados pelo caminho do progresso.

Outro exemplo é a fábula do Criador que volta à Terra disfarçado de tamanduá e, ao quase ser morto pelos humanos, se decepciona: “Avô, o que você achou da gente, das suas criaturas?”. E Deus respondeu: “Mais ou menos” (p. 22). A história revela a falência ética e espiritual dessa humanidade que perdeu o senso de pertencimento à Terra e de respeito pelos outros seres. Krenak questiona a validade de uma humanidade que devora o planeta e se aliena da natureza.

2. O vínculo estabelecido entre “humanidade” e “dinheiro”.

Krenak estabelece um vínculo direto entre a ideia de humanidade moderna e o culto ao dinheiro, revelando como o capitalismo sequestrou o sentido da vida, da política e das relações sociais. Para ele, vivemos uma farsa coletiva em que a economia é tratada como um sistema vital, mas na verdade é uma construção humana baseada em ficções. Ele ironiza: “A ideia da economia, por exemplo, essa coisa invisível, a não ser por aquele emblema de cifrão. Pode ser uma ficção afirmar que se a economia não estiver funcionando plenamente nós morremos. Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do Banco Central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, com a economia deles. Ninguém come dinheiro.” (p. 8).

Essa crítica aponta como o dinheiro, em vez de um meio de troca, tornou-se o fim de todas as ações humanas. A “humanidade” — enquanto projeto moderno — passou a ser orientada pelo lucro, pelo crescimento econômico e pelo consumo desenfreado. Isso levou à devastação ambiental e à alienação espiritual. A citação do provérbio indígena Lakota reforça essa crítica: “Quando o último peixe estiver nas águas e a última árvore for removida da terra, só então o homem perceberá que ele não é capaz de comer seu dinheiro” (p. 8). Aqui, Krenak mostra o absurdo de um sistema que sacrifica a vida para acumular riqueza, esquecendo que a sobrevivência depende da Terra e não da economia.

Além disso, ele critica a concentração de poder nas mãos de poucos: “O poder, o capital entraram em um grau de acúmulo que não há mais separação entre gestão política e financeira do mundo [...] somos governados por grandes corporações” (p. 9). Esse processo desumaniza a todos, inclusive os que estão no topo da pirâmide, transformando a sociedade em uma engrenagem de produção e lucro que ignora o valor intrínseco da vida.

3. A razão do autor vincular o poema: “O homem; as viagens” de Drummond, com a modernidade: “Restam outros sistemas fora / do solar a colonizar / Ao acabarem todos / só resta ao homem (estará equipado?).

Ailton Krenak recorre ao poema “O homem; as viagens”, de Carlos Drummond de Andrade, para ilustrar a crítica à modernidade e ao seu impulso destrutivo e expansionista. Ele interpreta o poema como um espelho da condição humana contemporânea: uma humanidade que já devastou a Terra e agora busca repetir os mesmos erros em outros planetas. “Restam outros sistemas fora / do solar a colonizar / Ao acabarem todos / só resta ao homem (estará equipado?)” expressa essa ironia amarga: ao esgotar tudo, restará ao homem a tarefa mais difícil — voltar-se para si mesmo.

Krenak destaca que a modernidade criou a ilusão de que o progresso é infinito e que é possível reproduzir a vida, o planeta, até mesmo o cosmos. Ele afirma: “Se uma parte de nós acha que pode colonizar outro planeta, significa que ainda não aprenderam nada com a experiência aqui na Terra” (p. 14). Assim, o poema de Drummond serve como uma advertência poética sobre o esgotamento desse modelo civilizatório.

A última parte do poema, destacada por Krenak, sugere a verdadeira jornada que precisamos realizar: “a dificílima dangerosíssima viagem de si a si mesmo: / pôr o pé no chão do seu coração / experimentar / colonizar / civilizar / humanizar o homem”. Isso significa que, em vez de colonizar planetas, é urgente que o ser humano reconecte-se com sua essência, com a vida, com o outro e com a Terra. Drummond, segundo Krenak, é um “paraquedas colorido” — uma voz sensível que pode ajudar a suavizar nossa queda e nos lembrar que há caminhos mais humanos e menos destrutivos a seguir.

Portanto, o poema revela o impasse da modernidade: ou continuamos consumindo mundos — como Krenak diz, “Depois que comermos a Terra, vamos comer a Lua, Marte e os outros planetas” (p. 35) — ou nos voltamos para dentro e redescobrimos o sentido de coexistir, de conviver e de cuidar. A colonização de si mesmo, proposta por Drummond, é o antídoto para a colonização predatória do outro.

Referência:

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

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