A Popularidade do Coringa e o Significante Vazio
A Popularidade do Coringa e o Significante Vazio
Por Janilson Fialho
O filme Coringa: Delírio à Dois (2024), dirigido por Todd Phillips, reacende uma questão fundamental: por que o personagem Coringa admite tantas versões? Desde o psicopata niilista até o revolucionário ressentido, passando por versões cômicas, românticas ou mesmo musicais, a figura do Coringa parece escapar de qualquer definição estável. A resposta para essa multiplicidade pode ser encontrada no conceito de "significante vazio", elaborado pelo pensador político Ernesto Laclau (1935–2014) em sua obra Emancipação e Diferença (publicada originalmente como Emancipation(s) em 1996).
Segundo Laclau, “um significante vazio é uma palavra ou imagem que carece de um significado próprio e fixo, mas que se torna um ponto de confluência simbólica para diferentes demandas sociais” (LACLAU, 2014, p. 40). Ou seja, é um símbolo que adquire força precisamente porque não diz nada de maneira unívoca, mas é capaz de dizer muitas coisas a muitas pessoas. Essa indeterminação permite que diferentes grupos ou indivíduos projetem seus próprios sentidos sobre ele.
É por isso que o Coringa funciona tão bem como um significante vazio. Ele não possui uma essência fixa, mas sim uma forma simbólica aberta, que pode ser preenchida com múltiplos significados. Pode ser o anarquista do filme O Cavaleiro das Trevas (2008), o mártir das massas em Coringa (2019), ou ainda o amante transtornado no musical psicológico de 2024. Como destaca Laclau, “a unidade de um povo é sempre construída em torno de significantes vazios” (LACLAU, 2014, p. 44). O Coringa, nesse contexto, atua como um ponto de identificação simbólica para uma série de afetos contemporâneos: ressentimento, inconformismo, niilismo, ironia, dor e até mesmo ternura.
No entanto, o fenômeno não se limita ao Coringa. Também os super-heróis, tradicionalmente tidos como símbolos de estabilidade moral, operam sob a mesma lógica discursiva. Embora esses personagens tenham uma origem narrativa bem definida, eles também funcionam como cascas vazias prontas para serem preenchidas com os discursos do presente. Batman pode ser o bilionário justiceiro reacionário, o órfão ferido em busca de sentido ou o vigilante ético. Superman pode ser o símbolo do ideal americano, o imigrante alienígena marginalizado ou um salvador messiânico. Essa plasticidade simbólica comprova que, conforme afirma Laclau, “nenhuma significação se mantém fixa fora de uma articulação hegemônica” (LACLAU, 2014, p. 39). A identidade, portanto, é sempre o efeito de uma disputa de sentidos.
Essa disputa simbólica também pode ser analisada à luz da psicanálise lacaniana. Para Jacques Lacan, o significante nunca coincide plenamente com o significado; há sempre um "deslizamento" que impede o fechamento do sentido. O sujeito é constituído por uma falta — aquilo que Lacan chama de desejo do Outro — e busca incessantemente um significante-mestre que o nomeie de forma definitiva, mas isso é impossível. O Coringa, nesse caso, opera como um significante-mestre falhado, um ponto vazio que atrai investidas de sentido, mas que nunca se estabiliza. Ele é, por excelência, uma figura descentrada: não representa um sujeito, mas uma lacuna no simbólico onde o sujeito se projeta.
Slavoj Žižek, ao integrar Lacan com teoria política, observa que os ícones da cultura pop — como os super-heróis — funcionam como pontos nodais ideológicos. Em Bem-vindo ao Deserto do Real (2002), Žižek afirma que a ficção não apenas representa a realidade, mas estrutura a forma como ela é percebida. O Coringa não é apenas uma fantasia escapista: ele encarna a disfunção da ordem simbólica, a falência do sistema de significantes que organiza o mundo. É por isso que ele se torna uma figura revolucionária ou apocalíptica, conforme o caso: ele simboliza aquilo que escapa à normalidade, aquilo que o discurso dominante tenta reprimir.
Žižek também argumenta que a multiplicidade dos super-heróis não é uma riqueza de versões, mas o sintoma de uma crise simbólica: "o excesso de reboots, universos paralelos e multiversos não é uma celebração da diversidade narrativa, mas a incapacidade do sistema cultural de produzir novos mitos" (ŽIŽEK, 2010). Assim como o capitalismo recicla tudo, inclusive sua crítica, a cultura pop reaproveita seus símbolos esvaziados, tentando constantemente reencontrar neles um sentido perdido.
O fenômeno dos multiversos, portanto, pode ser lido como um reflexo direto da estrutura do desejo: buscamos no mesmo significante (Coringa, Batman, Superman) uma resposta para perguntas que mudam com o tempo. Cada nova versão não resolve o enigma, mas o reinscreve em outro registro. Assim, como Lacan propõe, o desejo é o desejo de um Outro que nunca se realiza plenamente. E como Laclau complementa, é exatamente nesse vazio constitutivo que reside a potência simbólica de figuras como o Coringa: "é porque o significante não tem um referente fixo que ele pode se tornar o lugar de articulação de múltiplas demandas" (LACLAU, 2014, p. 47).
Portanto, a questão não é apenas o que o Coringa ou os super-heróis significam, mas por que continuam nos fascinado — por que continuam mobilizando o imaginário coletivo como espelhos da falta, da crise, da esperança ou da angústia. Eles são significantes vazios porque são, como nós, incompletos, e é essa incompletude que os torna politicamente eficazes e culturalmente inesgotáveis.
LACLAU, Ernesto. Emancipação e Diferença. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
LACAN, Jacques. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao Deserto do Real. São Paulo: Boitempo, 2003.
ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012.
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