A Inteligência Artificial e a Mercantilização da Cultura: Uma Análise Crítica da Apropriação de Conteúdos Culturais e suas Implicações

Por Janilson Fialho

Abordarei a problemática enfrentada pelas inteligências artificiais de modo bem sintético, distinguindo entre o que é uma falsa questão e o que constitui o verdadeiro cerne do problema. Posteriormente, empreenderei uma reflexão filosófica, fundamentada na teoria e na análise conceitual, a fim de fornecer um embasamento teórico para compreender aquilo que realmente está em curso. Finalmente, apresentarei sugestões acerca das ações possíveis, reconhecendo que minhas propostas são, sobretudo, conjecturas baseadas na observação do cenário atual. Este texto tem como propósito ser um prefácio do ensaio que virá em breve.

A crescente utilização de ferramentas de inteligência artificial na produção de imagens, vozes e textos tem gerado inquietação entre artistas e profissionais da criação. Em diversos setores, observa-se a substituição de mão de obra criativa por soluções automatizadas, impulsionadas por empresas de tecnologia que se apoiam em vastos repositórios de dados extraídos da internet.

Esse processo de automação criativa, embora tecnicamente fascinante, levanta importantes questões éticas, jurídicas e filosóficas. Do ponto de vista técnico, trata-se de uma inovação significativa. Contudo, a ausência de regulamentação clara tem permitido práticas que beiram a apropriação indevida de conteúdos culturais, muitas vezes produzidos por artistas independentes que não autorizaram o uso de suas obras como matéria-prima para o treinamento dessas ferramentas.

Na análise conceitual, é importante distinguir entre uma falsa problemática e o verdadeiro núcleo do debate. A discussão sobre se a inteligência artificial pode ou não ser considerada uma forma de arte é, na melhor das hipóteses, uma questão semântica. Embora relevante para a teoria estética, ela não é central para compreender o impacto da IA na cultura contemporânea. O foco deveria estar na transformação das dinâmicas de produção, circulação e apropriação da cultura, impulsionada por interesses econômicos, tecnológicos e políticos.

O cerne da questão reside na concentração de poder por parte de grandes corporações, que se apropriam de um volume crescente de conteúdos culturais sem consentimento, remuneração ou transparência. Ao serem treinadas com dados coletados de maneira indiscriminada, as inteligências artificiais reproduzem estilos, vozes e padrões originados no trabalho de artistas humanos, sem qualquer reconhecimento ou retorno financeiro para seus criadores. Esse fenômeno configura um processo de exploração simbólica e econômica, onde a criatividade é convertida em dado, e o dado, em lucro.

Para os artistas, isso representa uma forma de roubo silencioso: uma diluição de sua autoria e uma erosão de sua capacidade de sustento. Para o público, implica a perda de diversidade estética e a padronização das formas culturais. Ao consumir conteúdos gerados por máquinas treinadas em obras humanas não creditadas, a sociedade reforça uma lógica de invisibilização da origem criativa e de expropriação dos bens culturais comuns.

A regulamentação, por sua vez, tem se mostrado ineficaz ou conivente. Muitas plataformas adotam medidas de autorregulamentação que, sob o pretexto de proteger os usuários ou de promover a inovação, legitimam o uso indiscriminado de conteúdos alheios. Termos de uso confusos e contratos abusivos têm se tornado instrumentos de consolidação do controle das empresas sobre aquilo que é produzido com suas ferramentas, inclusive reivindicando, de forma velada, a propriedade sobre obras criadas por artistas utilizando seus softwares.

Essa lógica se insere no que Gilles Deleuze chamou de “sociedade de controle”, em que a tecnologia, ao mesmo tempo que amplia possibilidades, também impõe formas sutis e eficazes de dominação. A produção cultural se torna mais uma esfera controlada por algoritmos e interesses corporativos, enquanto os indivíduos são transformados em fontes de dados, desprovidos de poder real sobre os produtos que ajudam a criar.

Nesse cenário, a legitimidade das normas impostas por empresas deve ser questionada. Sob o discurso da inovação, perpetua-se um regime de exploração que se apoia na precarização do trabalho criativo. Empresas como a Adobe, ao reformularem seus termos de uso para permitir o uso irrestrito de conteúdos gerados por seus usuários, exemplificam esse movimento de apropriação institucionalizada da criatividade alheia.

As implicações ideológicas são profundas. Vivemos um tempo em que a liberdade criativa é invocada como valor, mas na prática é substituída por mecanismos de padronização e vigilância. O criador se vê diante de um paradoxo: é ao mesmo tempo necessário e descartável, reconhecido e invisível, livre e controlado. A inteligência artificial, nesse contexto, não é apenas uma ferramenta, mas um sintoma de uma lógica mais ampla de mercantilização total da cultura.

Diante desse quadro, identifico três frentes principais de resistência: os tradutores, os dubladores e os artistas visuais. Os tradutores enfrentam uma crescente automatização de tarefas e uma dispersão de interesses que dificulta a mobilização coletiva. Os dubladores, por sua vez, têm demonstrado maior coesão, articulando-se politicamente em defesa de seus direitos. Já os artistas visuais e criadores de conteúdo encontram obstáculos na falta de organização e na crença equivocada de que o constrangimento moral nas redes sociais é suficiente para frear o avanço tecnológico desregulado.

Concluo que a resistência mais efetiva exige articulação coletiva, regulamentação transparente e uma consciência crítica sobre os interesses em jogo. É ilusório acreditar que apelos emocionais ou boicotes isolados serão capazes de mudar o curso dessa transformação. A verdadeira disputa é por poder, visibilidade e dignidade. É preciso enfrentar a lógica concentradora das plataformas, defender os direitos autorais e reconstruir uma narrativa que valorize o trabalho criativo como patrimônio comum e não como insumo gratuito para algoritmos. Sem isso, corremos o risco de assistir, passivamente, à diluição da cultura nas engrenagens silenciosas da máquina.

Comentários

Postagens mais visitadas