Um Artista da Fome: Reflexão sobre o personagem de Kafka dentro da Sociedade do Desempenho e do Espetáculo

Um Artista da Fome: Reflexão sobre o personagem de Kafka dentro da Sociedade do Desempenho e do Espetáculo

Por Janilson Fialho

INTRODUÇÃO

O conto “Um Artista da Fome” (1924), do escritor Franz Kafka, apresenta a figura trágica de um jejuador profissional cuja profissão é a de encenar — verdadeiramente — seu próprio sofrimento em troca da admiração do público. A narrativa é apresentada de forma objetiva e distanciada, o que aumenta a sensação de estranheza e desconforto. O artista é descrito como uma figura solitária e obsessiva, que se isola em uma jaula para realizar seu jejum. A sua busca por superar seus próprios limites é apresentada como uma forma de arte, que é ao mesmo tempo fascinante e repulsiva.

Através da figura do artista, Kafka explora temas como a obsessão, a solidão, a busca pela perfeição e a relação entre o corpo e a alma. O conto também pode ser interpretado como uma crítica à sociedade contemporânea, que valoriza a produtividade e o desempenho acima de tudo. É por essa perspectiva da produtividade que iremos tecer reflexões sobre esse conto. Para fundamentação teórica, a narrativa poderá ser compreendida à luz das ideias de Byung-Chul Han e Guy Debord.

No mais, este pequeno artigo tem como finalidade explorar a intersecção entre esse artista kafkiano e as críticas contemporâneas acerca do neoliberalismo capitalista. Nossa crítica irá ressaltar a desumanização e a autoexigência do indivíduo tomado pelo ideal de romantizar, demonstrar e querer o próprio sofrimento em troca de algo nebuloso à razão; além disso, mostraremos também que, para o artista da fome, seu ideal também se encontra dentro da dinâmica social espetácular, ou seja, de que há uma necessidade de mostrar seu sofrimento para validar sua ação. Assim, tentaremos elucidar essas questões que permeiam a experiência humana.

1. O ARTISTA DA FOME

Em linhas gerais, "O Artista da Fome" é um conto perturbador e profundo escrito por Franz Kafka, e publicado em 1924. Ele começa evocando a queda no interesse pelos artistas da fome nos tempos atuais. O narrador fala de um tempo em que havia deslumbramento em relação aos artistas da fome: o assombro — das crianças, por exemplo, não sua incompreensão — explicava o interesse. O artista como coitado é retomado quando se descreve o teatro que fazem quando se acabam os quarenta dias de jejum e o artista é exibido para impressionar o povo. 

O conto expõe as dores de uma pessoa para quem a arte é quase orgânica, ou seja, não é propriamente arte. Uma pergunta que será ressignificada ao final do conto, mas que já vem sendo justaposta à felicidade dos novos tempos, em comparação aos passados, é a que o artista da fome se cria: "Se ele aguentava continuar jejuando, por que ela [a multidão] não suportava isso?" (KAFKA, 2007, p. 27). A manutenção da técnica lhe é insuportável.

A maior violência que se comete contra o artista da fome é uma inversão, o absurdo de sugerir que seu mau humor advenha do jejum e não do seu término: "O que era consequência do encerramento prematuro do jejum se apresentava aqui como sua causa! Era impossível lutar contra essa incompreensão, contra esse mundo de insensatez." (2007, p. 30).

No momento em que os números e o desempenho do artista da fome são fraudados, no momento em que o esquecem, é então que ele consegue se superar. Vale dizer aqui, que a arte do jejum não foi escolhida à toa; ela figura como a arte que leva, em sua própria definição, à aniquilação do indivíduo. É no jejum que o artista testa os limites do possível e do impossível. Deste modo, vemos algo se tornar a imagem de algo maior. O conto não consegue conceber o artista sem o seu público: tanto sua relação atual como sua anterior, ambas são impossíveis e incontornáveis.

Por fim, tomado pela pulsão de morte, o artista da fome oscila entre a melancolia, o masoquismo e a anorexia. Por causa disso ele morre como se fosse um mártir em defesa de nada, igual o objeto frágil e descartável sobre o qual jaz, e ele é substituído por algo que é, em si próprio, o absoluto, a arte orgânica e perfeita sem técnica: uma pantera. O desfecho com esse animal retoma ao leitor a radicalidade de refletir a necessidade absurda de jejuar do artista: essa necessidade (ou desejo, vontade, querer, etc) não era tão fisiológica quanto humana. Em outras palavras, o artista pode nunca ter encontrado nada que lhe desse fome, mas mas o resultado de todo esse desempenho o levou a não carecer mais dessa necessidade básica.

Contudo, o artista da fome é visto como um objeto de entretenimento, um ser peculiar por sustentar uma ideia estranha. Sua habilidade de jejuar, que deveria ser a fonte de seu poder, transforma-se em uma prisão. Enquanto ele busca a plenitude em seu jejum, o público projeta suas próprias expectativas sobre ele, reduzindo a experiência anoréxica do artista a um mero espetáculo.

2. DO DESEMPENHO AO CANSAÇO NA SOCIEDADE CONTEMPORANÊA

Byung-Chul Han, em suas obras, discute como a sociedade contemporânea se molda em torno da ideia de desempenho. Para Han, vivemos em uma cultura que promove a superação contínua e a auto exploração, onde os indivíduos são levados a se tornarem empreendedores de si. Essa pressão por resultados gera uma tirania da positividade, onde a falha não é atribuída ao sistema, mas sim ao indivíduo, que se envergonha de não alcançar suas próprias expectativas.

O contraponto que Byung-Chul Han apresenta sobre a positividade e a negatividade é desenvolvido mediante um contraste entre a "sociedade disciplinar" de Foucault, por um lado, e, por outro, a nossa atual "sociedade do desempenho":

"A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar,…entrou…uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. […] seus habitantes não se chamam mais 'sujeitos da obediência', mas…empresários de si mesmos. […] A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela negatividade da proibição. […] Também ao dever inere […] a negatividade da coerção. A sociedade de desempenho vai se desvinculando cada vez mais da negatividade. Justamente a desregulamentação crescente vai abolindo-a. […] No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação." (HAN, 2015, p. 14).

Dizemos, a partir dessa leitura, que o artista da fome pode ser visto como uma metáfora para o sujeito contemporâneo afogado na ideia de positividade e desempenho. Expondo a linguagem neoliberal da atualidade: o sujeito contemporâneo é um empreendedor de seu sofrimento. Han afirma que os indivíduos contemporâneos são "empresários de si". É verdade que o artista da fome tem, num primeiro momento, um empresário que controla a sua atividade de jejuar, dando-lhe uma estimativa de 40 dias de jejum. No entanto, o artista da fome acha esse número um absurdo, ele considera que pode passar mais dias, pornisso ele despensa o empresário e vai morar em im circo.

Deste modo, o artista é um empresário de si, porque a cobrança de sua atividade não é mais externa, é interna. É o artista que tem uma cobrança interna moldada pela positividade — uma cobrança internalizada na psique e no estilo de vida —, ele tem a ideia positiva de ser livre, ou nas palavras populares do autônomos "precarizados": "ele é quem faz o próprio horário". Mas, uma coisa que ele não percebe é que está sendo escravizado pelo desempenho e pela vontade superação de metas. Portanto, ele é um senhor-e-escravo ao mesmo tempo, por colococar a si mesmo a ideia de que tem capacidade de superação de sua atividade. Nós podemos dizer que existe o mesmo na sociedade, isto é, uma necessidade de ser cada vez mais "positivo", de estar envolvido em mais projetos ou criando novas metas a serem batidas.

Por meio disso, o artista da fome é levado à "exaustão" — o desgaste físico de seu corpo devido ao jejum excessivo — por um ideal autoimposto de desempenho que se traduz em uma realização pessoal positiva de superar seus recordes de dias sem comer. Assim, essa pressão para se superar leva-o à exaustão emocional e física. Nas palavras de Han: "[…] a sociedade do desempenho e a sociedade ativa geram um cansaço e esgotamento excessivos. Esses estados psíquicos são característicos de um mundo que se tornou pobre em negatividade e que é dominado por um excesso de positividade." (HAN, 2015, p. 70).

O artista da fome se submete a essa condição extrema para nos mostrar claramente o que seria a "exaustão" como consequência da pressão constante de desejar atingir metas cada vez mais altas por causa de uma realização fundamentada na positividade.

A sociedade do desempenho transforma cada falha em um motivo de culpa, muito semelhante ao que o artista experimenta em sua jaula. Deste modo, a sociedade do desempenho também pode levar a uma forma de "culpabilização" do não conseguir atingir o que se deseja — a culpa é também um fator que gera o desgaste psíquico. Além disso, o artista da fome, que se sente obrigado a se superar e a atingir metas fora de seu controle, sente em seu espírito a culpabilização do não conseguir realizar, e por isso ele sente uma angústia profunda por não ser um "ser realizado". A positividade imprime no artista da fome o ânimo do querer realizar, isso acaba se tornando um imperativo do dever, e a culpa está no não cumprimento do próprio imperativo.

A relação entre essas ideias é que a pressão constante para se superar pode levar também a uma cultura de culpa em relação ao descanso. Isso pode resultar em uma sociedade onde as pessoas se sentem obrigadas a estar constantemente produtivas, sem permitir-se tempo para descansar e se recuperar. O jejum do artista se torna constante, sua fome de alcançar o resultado se torna mais voraz do que a fome física do corpo. Todavia, podemos pensar também o seguinte: ele até pode jejuar fisicamente, mas é um glutão insaciável do desejo de desempenhar seu papel naquele lugar. Ele alimenta o espírito com o desgaste físico.

Portanto, o problema que se mostra aqui, é que a sociedade contemporânea valoriza mais a produtividade excessiva e o trabalho árduo como sinais de sucesso e virtude. Com isto, somos levados a uma cultura de competição e de avaliação constante, que romantiza a exigência exacerbada do esforço e a necessidade existencial de ser cada vez mais produtivo, onde as pessoas se sentem pressionadas a atingir objetivos cada vez mais altos para serem consideradas bem-sucedidas, sem permitir-se tempo para descansar ou se recuperar, a consequência é o esgotamento e o Burnout, além de doenças como depressão, ansiedade e o transtorno de déficit de atenção, em o mais fatal — que, aliás,  foi o que aconteceu ao artista da fome —: a morte.

3. O SOFRIMENTO COMO CONTEÚDO ESPETACULAR

Guy Debord, em sua seminal obra "A Sociedade do Espetáculo", argumenta que o mundo moderno é dominado por imagens que, mediadas por um consumo constante, desencadeiam uma realidade onde a aparência prevalece sobre a essência. A vida se torna, assim, uma representação, uma performance constantemente observada. Debord ressalta que "tudo o que era vivido diretamente tornou-se representação" (1997, p. 15), o que ecoa, portanto, na experiência da personagem kafkiana, por ele ser alguém cuja autenticidade é eclipsada por sua função social como entretenimento.

As imagens que observamos, ao invés de provocar a indagação, a reflexão e a crítica, são dramatizadas com o propósito de explorar as emoções — como o medo, a raiva e a felicidade — para prender a atenção do público. A busca pelo aprisionamento da atenção da audiência acarreta em uma priorização de buscar histórias impactantes, tanto pelos meios de comunicação que as produzem, quanto pelo público que as assiste. As imagens produzidas em situações de sofrimento ou agonia, frequentemente, refletem uma lógica de espetacularização que pode ser analisada sob a ótica da percepção capitalista. Nesse contexto capitalista, o sofrimento humano em distintas situações de tragédias é transformado em um produto que gera valor, a rigor, em detrimento da dignidade dos sujeitos retratados.

Quando a mídia tradicional ou outras plataformas de comunicação capturam ou reproduzem e disseminam imagens de desespero, elas tendem a enfatizar o drama e a tragédia. Isso não apenas atrai a atenção do público, mas também pode gerar uma forma de consumo emocional, na qual o sofrimento torna-se uma grande mercadoria. Guy Debord, afirma que o vivido está se esvaindo na fumaça da representação, trata-se de "[…] uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens." (2003, p. 14).

Deste modo, no caso do artista da fome, sua existência é reduzida ao espetáculo, ou seja, o valor desse indivíduo é ditado por seu desempenho e pela imagem que projeta aos outros. À medida que o artista se torna cada vez mais irrelevante, ele se depara com a indiferença de um público que, pela própria lógica do espetáculo, busca novas formas de entretenimento, esquecendo rapidamente aqueles que não conseguem se adaptar às exigências dessa nova realidade. 

Se antes o artista da fome era capaz de chamar a atenção e divertir o público, se ele tinha sido aclamado por milhares de pessoas, agora o interesse por seu ofício havia decaído — como sabemos desde as primeiras linhas da história. O artista, então, acaba sendo transferido para um grande circo, onde é deixado de lado. Lá ele continua a jejuar, por hábito, e ninguém mais atualiza a tabela com o número de dias de seu jejum, como também ninguém substitui mais os cartazes que o anunciavam, e "quando o público, nos intervalos do espetáculo, se comprimia junto às estrebarias para visitar os animais, era quase inevitável que passassem diante do artista da fome e parassem um pouco" (KAFKA, 2007, p.32).

Seguindo a lógica da obsolescência programada dos produtos (KOTLER; KELLER, 2006), era hora do artista da fome dar lugar a uma novidade, a um novo espetáculo. A sua exposição chegou à saturação: "as pessoas acostumaram-se à estranheza de se querer chamar a atenção para um artista da fome nos tempos atuais é esse hábito lavrava a sentença contra ele" (KAFKA, 2007, p. 33). Isso ilustra como a sociedade pode se acostumar com a estranheza e a excentricidade, tornando-as comuns e banais. A sociedade sofrendo da obsolescência programada, onde as coisas são constantemente substituídas por outras mais novas e mais atraentes, nos passa uma sensação de que há uma cultura do descarte e do esquecimento, não apenas para o artista da fome, mas também para as pessoas que são vistas como "obsoletas" ou "desatualizadas". A sociedade sofre de uma falta de apreço pela tradição e pela continuidade, e em vez disso, valoriza a novidade e a mudança acima de tudo.

Sintetizando o que acabamos de dizer, o sofrimento do artista da fome é um reflexo da sociedade que o cerca, que o tem como objeto de contemplação sem valor. Se outrora ele foi tão aclamado e admirado, agora ele foi esquecido e substituído por uma nova atração, e o mesmo ocorre conosco, sujeitos da sociedade do desempenho e da transparência. Afinal, temos como dever angustiante evitar a obsolescência que se aproxima, portanto, inovar constantemente aquilo que estamos fazendo: o desempenho excessivo como ordem consequente para a atualização, ou ainda, o progresso sem fim da atividade espetacular. No mais, a situação do artista ao invés de promover uma compreensão crítica, as imagens espetacularizadas, geralmente, perpetuam estigmas e simplificações, transformando a dor e o sofrimento em símbolos máximos de contemplação.

Contudo, a "cultura do espetáculo" que Guy Debord descreve, diz que nós criamos uma sociedade de espectadores que capturam a imagem de tudo, incluindo a nossa própria, e isso resulta na transformação de nós mesmos em imagem. A cultura do espetáculo tem conexões diretas com a estrutura política e econômica da sociedade, pois ela nos torna pessoas mais passivas, dóceis, objetificadas e com um desejo fetichizado por poder. Nesse espetáculo constante, as relações sociais são transformadas em uma interação entre personagens e plateia, tal como acontece com o artista da fome e seus espectadores. 

CONCLUSÃO

A intersecção entre o artista da fome de Kafka, a crítica de Byung-Chul Han à sociedade de desempenho e a análise de Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo nos convida a refletir sobre a condição humana contemporânea. Tanto o personagem kafkiano quanto os sujeitos da sociedade atual enfrentam a mesma luta: a busca por significado em um mundo que os reduz à sua performance desgastante. Nossa análise, portanto, revela a necessidade urgente de reavaliar as estruturas que moldam nossas vidas e a importância de buscar uma compreensão mais profunda de nossa essência, além da imagem e do desempenho.

REFERÊNCIAS:

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DEBORD, Guy. Exaustos-e-correndo-e-dopados: A sociedade do espetáculo. Tradução de Railton Souza Guedes. São Paulo: Coletivo Periferia, 2003. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/debord/1967/11/sociedade.pdf

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

HAN, Chul-Byung. Psicopolítica - O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ed. Ayiné, 2020.

KAFKA, Franz. Um artista da fome. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

KOTLER P.; KELLER E.L. Administração de marketing. São Paulo: Pearson Universidade de Prentice Hall, 2006.

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