O valor simbólico de uma banana: uma reflexão sobre arte e sociedade
O valor simbólico de uma banana: uma reflexão sobre arte e sociedade
Por Janilson Fialho
Mais uma vez pudemos presenciar a arte contemporânea sendo motivo de discussão em todas as esferas sociais. Cabe dizer que essa obra já foi motivo de polêmica em 2019 e 2023, gerando discussões se ela é arte. Agora, em 2024, ela retorna reavivando essa discussão, mas adicionando também a indignação das pessoas sobre o preço exorbitante que foi vendida.
Todavia, a que arte me refiro aqui? Estou falando da obra intitulada de “Comediante”, do famoso artista italiano Maurizio Cattelan, cujas obras são bastante satíricas e controversas. Foi essa obra que abalou o mundo da arte — após o mictório de Duchamp — em sua estreia na Art Basel de Miami em 2019.
Comediante - Maurizio Cattelan
A obra de Cattelan consiste apenas em uma banana presa na parede com fita adesiva. Ela foi vendida em leilão por US$6,2 milhões (cerca de R$35 milhões) no dia 20 de novembro, para o empresário de criptomoedas Justin Sun.
Particularmente considero essa obra espetacular! Mas não seja precipitado em seu julgamento, nobre leitor, não me acuse de ter mau gosto ou de ser louco. Justificarei aqui, na posição de filósofo, porque considero ela assim. Mostrarei que ela é um prato cheio de conceitos, problemas e discussões para quem se dedica ao conhecimento. Entretanto, não falo apenas para os filósofos, tentarei aqui convencer — ou melhor, irei desvelar — que você, nobre leitor, não se difere desse empresário chinês.
Minha discussão filosófica mostrará como funciona o ser humano e a sociedade — mas tenha cuidado para não generalizar todas as culturas aqui — através da valorização de símbolos abstratos e o desejo de consumir/adquirir o que é desnecessário. Mostrarei que isso é próprio dos seres humanos, mas que se acentua mais em uns do que em outros. Portanto, devemos dizer que é questionável o que o comprador da obra fez, mas dizer que é loucura já é um equívoco, porque olhando bem todos somos “loucos” por ter esse olhar valorativo. Aliás, não entrarei aqui em uma discussão acusativa de que foi lavagem de dinheiro, isso não me interessa. O que me interessa é: por que temos interesse em certos objetos? O que faz um objeto ter valor? Por que nosso interesse confere valor a um objeto? Veja, esses são os problemas que trarei aqui.
Comecemos, portanto, por essa questão: quanto vale uma banana? A que Cattelan vendeu foi por 6,2 milhões de dólares. Apesar de a banana estar cara nas feiras do Brasil, essa daqui nem se compara em valor com a que foi vendida no leilão. Entretanto, porque houve essa diferença? O que houve aqui? O que havia no material? Tinha algo de especial no objeto? A resposta é não. Não havia nada dentro dela e nem na sua composição, nem mesmo na fita.
O que Justin Sun adquiriu foi apenas um certificado de autenticidade da obra, ou seja, ele adquiriu um documento que lhe confere o status de originalidade — sobre isso farei um ensaio dialogando com a filosofia de Walter Benjamin — e a autoridade de poder colar uma banana na parede com uma fita e chamá-la de “Comediante”, é o que explica a National Public Radio. Além disso, o empresário recebeu as instruções técnicas do próprio Cattelan sobre como instalar a obra corretamente, de modo que o comprador possa, caso queira, substituir a fruta sempre que esta ela apodreça.
Perguntamo-nos o seguinte: o que ele fez é por acaso diferente dos acordos abstratos que fazemos? Quero que me mostre onde há diferença daquilo que fazemos o tempo todo? Ora, por acaso não vivemos sob acordos sociais e culturais, com normas de etiquetas, convenções sociais, tradições, superstições, valores morais e símbolos nacionais, ou não vivemos de comprar o tempo todo inutilidades, ou utilidades efêmeras na internet? Por acaso isso não está sob o regimento de um entendimento mútuo que consolidou tais coisas como práticas sociais e valores? Mas note o seguinte: tudo isso não são apenas coisas do nosso entendimento, da nossa cabeça, ou melhor, do nosso interesse? Portanto, tudo isso são acordos entre nós mesmos — uma intersubjetividade —, e muitos desses acordos são valores passíveis de relatividade, ou seja, nem todo mundo demonstra o mesmo interesse por certas coisas ou cumpre certas tradições ou normas sociais, mas há outros que têm esse interesse.
Pense comigo: basicamente, ele comprou o título da obra, mas por acaso isso é algo estranho? Será que o restante da sociedade não faz o mesmo, ou seja, comprar títulos de alguma coisa? O dinheiro pode ser investido em coisas abstratas que não servem para nada de prático, como: coleções de itens raros, direitos autorais, patentes, títulos de nobreza, propriedades virtuais, criptomoedas, ações de empresas, derivativos financeiros, etc. Esse é o lado mais extravagante do capitalismo.
Peguemos dessa lista, por exemplo, o título de nobreza e vejamos a sua realidade: sua importância reside exclusivamente na percepção individual e coletiva, ele só existe para reforçar desigualdades sociais e hierárquicas, ou melhor, é apenas um valor aristocrático que gera uma noção de superioridade aos demais. Em essência, isso é apenas uma busca de status e distinção, é só uma ideia para se achar especial.
Agora para radicalizar ainda mais nosso problema, vejamos o teatro dos valores abstratos que essa obra nos desvela: o comprador, mediante uma transação financeira, nos diz que tem autoridade exclusiva de colar uma banana na parede, e essa justificativa nos faz acreditar em tal validade, então acreditamos que ele tem de fato a posse e o direito de colar uma banana na parede e chamá-la de “Comediante”, e nós acreditamos que não podemos fazer o mesmo, mas se caso fizermos nós estaríamos infringindo a lei que assegura a ordem de quem pertence essa ideia abstrata — o que é chamado de direito autoral —, pois, nós estamos — a contragosto — inseridos neste contrato social que dá ao comprador da obra exclusividade de ser o dono dela, e se insistirmos em afirmar nossa posse dessa ideia ele pode usar o aparato jurídico e opressor da lei contra quem ousar se apossar dessa ideia abstrata.
Parece ridículo, não é? Existir a compra de uma posse abstrata de uma ideia artística conceitual e haver leis e um aparato repressor que impede as pessoas de se apossar dessa ideia de colar uma banana na parede — por isso que você, nobre leitor, não pode fazer essa arte, porque você não tem os direitos dela. Entretanto, não fazemos isso com qualquer tipo de propriedade, até mesmo aquelas sendo o contrário das propriedades intelectuais, ou seja, as propriedades físicas? Podemos dizer que o que nos assegura a posse são os acordos abstratos.
Há pessoas que adquirem, mediante uma transação financeira, a posse de uma terra — e tal como uma obra de arte, ele deixa aquela terra improdutiva, ou seja, deixa ela inútil, servindo apenas para especulação —, ele se afirma como proprietário e nos convence que é tal coisa por meio da lei jurídica, e nós acreditamos que ele é o dono por causa dessa lei, mas caso queiramos questionar a validade ou se apossar dessa terra, nós estaríamos infringindo a lei, e para assegurar a sua posse jurídica ele usa o aparato opressor da lei. Devemos dizer que tudo isso se expressa apenas pela palavra e um pedaço de papel, ou seja, aqui temos a lei abstrata que nos convence da ordem, mas a realidade da posse apenas mostra sua face medonha quando as ideias não convencem mais, ou melhor, sob a presença da violência jurídica.
Nada parece estar mais de acordo com a questão do regimento abstrato do que essa frase do filósofo Schopenhauer: “o mundo é a minha representação”. Afinal, o sujeito dá um valor monetário abstrato, que representa um valor, para comprar a posse abstrata de um objeto de valor abstrato. Nada disso faz sentido olhando dessa forma, mas nós acreditamos que faz sentido. Em nossa mente, o dinheiro, a posse e o valor fazem sentido, e está tudo certo ou é normal — aliás, “normal” e “certo” também são conceitos de valor abstrato —, afinal, quem dos seres ativos ousa questionar a existência, a função, o sentido e a validade disso tudo em sua mais profunda radicalidade? Parece, portanto, ser próprio do ser humano ser um ser imaginativo que transforma sua imaginação em regras e valores.
Ainda pode ser questionada a natureza material do objeto e sua função de uso para desqualificar o valor da obra, mas não somos nós mesmos que valorizamos coisas que praticamente não servem para nada, que apenas colocamos como adorno sobre o corpo e adoramos como se houvesse algo especial nele? Afinal de contas, qual a diferença entre adorar uma banana colada na parede e adorar o ouro? Não vejo diferença nenhuma entre adorar esse vegetal e adorar um minério. Mas o que diferencia o interesse entre ambos? Será que a vaidade cria uma diferença que confere um status de validade e superioridade aos admiradores do ouro?
Historicamente, o ouro sempre foi associado à riqueza, poder e valor, detendo um simbolismo que transcende sua utilidade prática. Em contraste, a banana, embora essencial para a sobrevivência humana, carece de significado cultural e religioso, cabe a ela o valor alimentar. Em algumas culturas, o ouro é até considerado sagrado ou associado à divindade, reforçando sua “aura” de importância. Portanto, veja que acrescentamos uma essência mística a um objeto que praticamente é inútil à vida.
O ouro possui valor intrínseco, sendo valorizado por si mesmo, enquanto que a banana tem valor extrínseco, limitado ao seu uso. Nós podemos dizer que o que é necessário à vida, não ganha a mesma aura do que é inútil. Deste modo, será que o valor da arte está em sua inutilidade? Afinal, não é isso que está no prefácio de “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde? Isto é, de que toda arte é completamente inútil? E neste caso, Cattelan não tornou uma coisa útil à sobrevivência como inútil? Aqui a inutilidade veio à tona quando ele usou uma técnica artística chamada de deslocamento, isto é, ele retirou o objeto de sua especialidade e de sua função original para um novo contexto. Deste modo, Cattelan transformou a essência por meio do espaço. Portanto, tornou a aura do útil em uma aura inútil, e se toda arte não é utilitarista, logo esse objeto se tornou uma obra de arte.
O que fiz aqui foi apenas um exercício de valor, afinal, ser ou não ser é uma questão do que se define ser. É arte ou não é arte, é apenas parte dos nossos valores e de nossas definições conceituais. Veja que eu acabei me igualando aqueles que criam tabelas de valores para listar o que vale mais: o inútil vale mais que o útil; mas o outro pode dizer o contrário: o útil vale mais que o inútil. A partir disso, dessa tabela dos valores, inicia-se o conflito dos valores entre nós mesmos. E não pense que essa guerra estética se restringe a esses dois valores — útil e inútil —, podemos nos digladiar sobre o bonito ou feio, o bom ou mau, o consonante ou dissonante, etc., mas no final das contas, brigamos por juízos de valores, por aquilo que gostamos particularmente. Brigamos por entidades e identidades psicológicas do nosso Eu.
Psicologicamente, a motivação por trás da adoração também difere significativamente. O ouro — voltemos de novo a esse exemplo — é frequentemente associado ao desejo de riqueza e status, enquanto que a banana pode ser adorada por outro tipo de valor estético: por ironia, questionamento ou criatividade — note que ainda estou usando a tabela dos valores para categorizar cada tipo de valor, parece ser inevitável a atitude de classificar e delimitar o que vale mais e o que vale menos; mas, no fundo, esses valores tem a ver apenas com o interesse do indivíduo. Ademais, o efeito psicológico de adorar essa obra de Cattelan pode gerar questionamentos e reflexões, ao passo que a adoração do ouro pode reforçar a busca pelo status materialista. Podemos colocar outro valor aqui: a banana colada com fita busca a crise do valor dos objetos e o interesse, já o outro, busca afirmar o valor.
Essa reflexão nos leva a questionar nossos valores, crenças e motivações. A atribuição de significado a objetos inanimados revela mais sobre nossas próprias percepções e desejos do que sobre os objetos em si. Portanto, estou buscando entender a radicalidade do interesse e da criação dos valores nesses objetos. Entender a natureza humana que fabrica aquilo que Marx chama de “fantasmagoria” nos objetos. Entender por que criamos fetiche nas coisas.
O que é fetichismo? Por que temos isso? Partindo de uma perspectiva marxista, o fetichismo das mercadorias é um conceito desenvolvido por Karl Marx em “O Capital” (1867), nessa obra ele descreve como os objetos inanimados adquirem valor e significado além de sua utilidade prática — aliás, essa teoria foi desenvolvida também por György Lukács em “História e Consciência de Classe” (1923) e por Guy Debord em “A Sociedade do Espetáculo” (1967). Na sociedade capitalista, relações sociais são mediadas pelas mercadorias, criando a “fantasmagoria” que distorce nossa percepção.
Marx argumenta que o valor de uma mercadoria é determinado pelo "mercado" (a superestrutura ideológica), e não pela sua utilidade, portanto, ela recebe um tratamento valorativo que desperta nosso interesse e desejo para obtê-la. Além disso, o fetichismo dos produtos gera uma reificação onde os objetos são tratados como se tivessem vida própria. Isso leva à despersonalização, substituindo, por exemplo, as relações humanas por relações com objetos, e à ilusão de objetividade, onde o valor é visto como inerente exclusivamente ao objeto. Podemos dizer que Marx descreveu — e previu — bem a sociedade contemporânea, pois, podemos dizer que a moda, a tecnologia e a arte, são objetos transformados em símbolos de status, desejo ou investimento. Se um objeto inanimado tem essa potencialidade toda de receber essa aura valorativa, podemos até pensar em dar um passo adiante nessa valoração em dizer que uma inteligência artificial já pode ser tratada como um ser consciente, pois, cada vez mais estamos elevando os nossos afetos e sentimentos a esses. Será esse o futuro da humanidade: consolidar de vez o tratamento dos objetos artificiais como seres com alma e a própria humanidade como desalmada? O virtual será sacralizado e o vital será profanado de vez com o niilismo?
Marx tratou dessa fantasmagoria nos objetos no contexto do capitalismo, mas ele não tratou das questões mais ontológicas do problema, como: por que temos essa condição valorativa? Ou por que somos seduzidos pelos objetos? Ele situa bem o problema no contexto social, mas o problema em si não é abordado. Por enquanto, me darei por satisfeito com a resposta dele, porque estamos tratando de um objeto fetichizado em um leilão, um objeto que espanta mais por seu preço monetário e não por seu juízo de valor estético.
Contudo, não me dou por satisfeito sobre a questão do interesse, do valor e dos acordos abstratos, ainda pretendo falar da questão da “aura”, segundo a filosofia estética de Walter Benjamin (adiantamos que aura para ele assume a expressão “do aqui e agora”), para falar sobre a reprodução técnica e a mercantilização da aura, ou seja, da compra do que chamo do “puro abstrato”. Mas podemos finalizar esse texto mostrando que a obra de Cattelan tem valor artístico e filosófico que nos permite refletir sobre questões fundamentais em diversas áreas do conhecimento, mas também tem um valor monetário abertamente absurdo que nos faz pensar nas contradições do ser humano e do capitalismo.
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