Ensaio sobre o labirinto e o Minotauro: o conflito entre a arte e a razão
Ensaio sobre o labirinto e o Minotauro: o conflito entre a arte e a razão
Por Janilson Fialho
O mito do labirinto e o Minotauro me desperta um fascínio que, por vezes, chega a ser indescritível. É vasta a carga simbólica que os personagens Teseu, Ariadne e o Minotauro (e também Dionísio) podem possuir; e essa vastidão simbólica permite aos pensadores, poetas, escritores e músicos realizar um número elevado — por que não dizer incontável? — de interpretações, poemas, contos e baladas. Como é agradável contemplar as mais variadas perspectivas e representações desse mito, por exemplo, ler o Fio da Fábula, de Jorge Luis Borges; admirar a bela pintura Baco e Ariadne, de Ticiano; ou também assistir ou ler o texto da peça teatral Los Reyes, de Julio Cortázar. São tantas as obras que ficaria preso aqui dando exemplos.
Há um certo tempo li um artigo de Deleuze que, originalmente está publicado em sua obra Crítica e Clínica, se intitula de “O Mistério de Ariadne Segundo Nietzsche”. Nele, Deleuze quer analisar o papel de Ariadne, situada entre dois homens: Teseu e Dionísio. Afinal, é a partir dessa tríade (Teseu-Ariadne-Dionísio), que Deleuze explora a relação entre a vida reativa, que se esmaga sob o peso de todos os valores que carrega, e a vida afirmativa que, ao invés de manter-se numa forma, está apta a transformar a si mesma. Entre esses dois está o grande mistério de Ariadne, ou em outras palavras, o poder de redobrar a própria afirmação (sim-sim): o devir-ativo da vida no eterno retorno.
No entanto, aqui não quero fazer um comentário ao que disse Nietzsche e Deleuze. Aqui, quero seguir por outro caminho — na verdade, fazer o meu próprio caminho —, ou seja, conceber a esse mito, que tanto admiro, uma outra perspectiva. Uma que seja diretamente ligada à questão estética. Pretendo olhar para os personagens e extrair deles uma interpretação do que seja a arte para mim; além de que — e isso, creio eu, é o que afastará o meu texto do texto de Nietzsche/Deleuze — darei minha interpretação sobre Ariadne aqui. Comecemos então a tecer o fio condutor desse ensaio.
A Arte é igual ao famoso labirinto do mito de Teseu e Ariadne. O labirinto como um todo é a representação da obra de arte, e seus infinitos corredores representam as várias perspectivas que podemos ter acerca da arte. Além do mais, o nobre Teseu, o herói que desbrava os infinitos corredores e passagens do labirinto, a meu ver, é o observador que contempla a arte, é ele que percorre os corredores da fruição, do sentido e da interpretação. Cada passagem, cada beco sem saída é uma perspectiva, uma interpretação da arte.
A bela Ariadne, por outro lado, é a representação do artista, mas daquele artista que quer controlar sua obra, isto é, aquele que dita e aponta o caminho de como se deve contemplar; digo tal coisa da bela Ariadne porque ela oferta ao nobre Teseu um fio que conduz ao centro do labirinto, que o conduz para dentro e para fora, ou seja, um fio que o conduz por um caminho certo e seguro, que não faz o nobre Teseu se perder na vastidão das passagens sem saídas. Portanto, há artistas que, tal como Ariadne, criam suas artes, seus labirintos, mas oferecem, ao mesmo tempo, ao observador um fio condutor, mas esse fio condutor oprime a experiência libertadora do se perder nos corredores infinitos do labirinto; assim, ela esconde o que está além do sentido do artista, ou seja, as várias perspectivas da obra de arte.
Entretanto, se por ventura, o nobre Teseu solta o fio do novelo da bela Ariadne para desbravar os infinitos corredores do labirinto, ele sabe que isto será uma experiência aterrorizante, afinal, ele sabe que pode se encontrar com o temível Minotauro. Além do mais, o nobre Teseu não solta o fio de Ariadne, pois — para além do oculto temor —, ele também entrou no labirinto com uma missão em mente, com um sentido, com uma perspectiva estabelecida previamente do que é a obra de arte, e seu fio condutor apenas assegura o seu destino, que é matar o assombroso Minotauro que devora o coração e a mente das pessoas.
A fera que habita no labirinto, no entendimento de Teseu, representa o que há de “perigoso” na arte. Mas esta fera é mais humana que o civilizado Teseu, porque o Minotauro é o poeta livre, é o pintor livre, é o músico livre, etc.; por fim, ele é o artista livre que vaga perdidamente pelos corredores do labirinto. O encontro do Minotauro com as pessoas significa uma coisa: o ato de devorar o coração e a mente é o que faz a mais bela das artes quando toca profundamente no interior da alma e afeta nossas sensações levando-nos ao êxtase.
Pode-se dizer ainda que essa arte é aquela que não censura a vida. Pois, a vida é, tal como a arte é, algo perigoso, mas também é o que há de mais precioso na existência humana. A arte é perigosa, mas ela é necessária à vida, e o perigo faz parte dela, tal como o perigo faz parte da vida, assim como é dito pelo jagunço Riobaldo de Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa: “viver é muito perigoso!”. Mas voltemos ao nosso mito.
A própria anatomia do Minotauro expressa ser uma obra de arte. Sobre as partes humanas da criatura nós podemos dizer que é aquilo que há de mais “bonito” e “agradável” na vida; e as partes animalescas representam o “trágico” e o “horrível”, além do mais, podemos dizer também que essa parte é a própria representação da natureza — a natureza que por muito tempo assombrou as pessoas. Essa composição que mescla homem e animal pode, por alguns, ser considerada grotesca ou risonha, pode ser bela ou aterrorizante, pode ser baixa ou imponente; mas deixemos de lado essa história de “isso ou aquilo”, e vamos assumir de vez o que é o Minotauro, isto é, a composição “homem-animal”; sendo assim, a arte, como um todo, é a reunião de todos os aspectos estéticos que existe (o feio e o agradável, a felicidade e a tristeza, a luz e a sombra, etc.). No fim, o Minotauro é tanto o artista, como também é a própria representação da obra de arte, ou seja, no seu próprio Ser há também essa composição que entende a arte e a vida, o artista e a arte, não como partes distintas, mas como juntas, isto significa que ele assume suas partes como um todo. Deste modo, é assim que vemos a criatura que vaga perdidamente pelos corredores, pelas veredas das perspectivas da arte.
O labirinto e o Minotauro estão unidos, eles são uma só entidade. A criatura perdida que habita dentro do labirinto, ou o sentido da obra de arte, encontra a pessoa que vaga sem rumo pelos vastos caminhos da contemplação; cada caminho, um sentido, mas um sentido múltiplo, pois, cada encontro é único enquanto se encara a criatura. A sensação de estar perdido é o encantamento dos corredores do labirinto, afinal, é isso que faz o mesmo caminho ser outro, é isso que faz a mesma arte ter novas interpretações. Penso naquele conhecido fragmento de Heráclito (B91), e aqui faço um adaptação dele: “nunca somos o mesmo ao percorrer o mesmo caminho duas vezes, porque a sensação de estar perdido, de estar sendo vigiado pelo Minotauro ou por qualquer outra sensação, não te faz ser o mesmo”.
Teseu, guiado pelo fio de Ariadne, percorre o infinito labirinto ao encontro da criatura. O guerreiro que representa o discurso da racionalidade, da lógica, da identidade, da “autoridade artística” que diz o seu sentido exclusivo, busca eliminar aquele que é e é visto como sendo o diferente, o ambíguo e contraditório. Teseu quer matar o Minotauro, o discurso racionalista quer matar a ambiguidade poética e o que não é lógico ou métrico. Eis o que representa o combate de Teseu (razão) e o Minotauro (arte): Teseu mostra-se como o homem protetor da civilização e quer matar a criatura que representa o perigo a vida e a ética, ele é o discurso moral que censura a arte; Teseu representa a imagem do que deve ser unicamente considerado belo e ele quer matar a criatura por sua aparência feia, porque para esse discurso o feio é sinônimo de perigo e de maldade, ele (Teseu) é a imagem estética “válida” e quer suprimir toda aparência grotesca, feia e sofrível, além de outras que difere do padrão estético; Teseu, conduzido pelo fio de Ariadne, por fim, representa o opressivo discurso objetivo que mata a subjetividade representada pelas figuras do labirinto e o Minotauro.
Contudo, o que é a arte através desse mito? A arte é algo feito para se ter múltiplas interpretações e várias maneiras de se obter sua fruição. A arte, representada pela entrada de Teseu no labirinto guiado pelo fio de Ariadne e encontrando o Minotauro, é, a meu ver, a representação perfeita do encontro entre a racionalidade e a subjetividade, entre o bonito e o feio, entre o conhecido e o desconhecido. Mas, ao contrário do mito original, aqui destino esse espaço para valorizar o que é humano, demasiado humano, e não ao que é civilizado, isto é: a arte! Porque ela é o espaço onde podemos nos perder, nos encontrar, nos confrontar com nossos medos, nossos desejos e nossas ambiguidades. É o lugar onde podemos ser confrontados com a complexidade da vida e da existência humana, onde podemos experimentar o perigo e a liberdade; só a arte nos proporciona a vida em nossa máxima potência. A arte é perigosa, tal como a vida é, mas o perigo é libertador e nos conecta com nossas paixões. É através desse contato com o Minotauro, o artista que possui o que chamo de vontade de expressão, dentro do labirinto das infinitas possibilidades, que podemos nos libertar das amarras da racionalidade e da lógica, e nos permitir ser tocados, transformados e enriquecidos pela experiência estética.
(Publicado originalmente no Blog Dito & Feito)
Serraria - PB. 27 de jun., 2024
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