Minicurso: análise musical da obra "Prelúdio à Tarde de um Fauno", de Claude Debussy

 MINICURSO: ANÁLISE MUSICAL DA OBRA “PRELÚDIO À TARDE DE UM FAUNO”, DE CLAUDE DEBUSSY

Autor: Janilson Ferreira Fialho Filho

Serraria (PB) - 2024

Artigo apresentado no minicurso — Análise musical da obra “Prelúdio à Tarde de um Fauno”, de Claude Debussy — aos participantes interessados em música e aos alunos da Escola de música Genaldo Cunha Lins (Casa de Wellington Farias - Ponto de Cultura Roberto Luna), como contrapartida do recebimento do recurso da Lei Aldir Blanc. 

***

“Por muito tempo — e em muita pintura profana À sua sombra ainda hei de enlaçar cinturas;” L’Après-midi d’un Faune - Stéphane Mallarmé.

Dedico este trabalho à minha noiva. Também dedico à minha família.

***

SUMÁRIO


1. INTRODUÇÃO

2. O POEMA DE MALLARMÉ E O PRELÚDIO

2.1 POEMA COMPLETO DE MALLARMÉ

3. A COMPOSIÇÃO DE DEBUSSY

4. A INSTRUMENTAÇÃO DO PRELÚDIO

5. GRAVAÇÕES RECOMENDADAS

6. CONCLUSÃO

RESUMO

Este minicurso tem o propósito de analisar a peça “Prélude à l'Après-midi d'un Faune”, do compositor francês Claude Debussy (1862 - 1918), que foi composta entre 1892 e 1894 e estreada em 22 de dezembro de 1894, e o Prelúdio é inspirado no poema — de mesmo nome — de Stéphane Mallarmé, estabelecendo uma profunda conexão entre música e poesia simbolista. O estudo ressalta a estética inovadora da obra de Debussy, que evoca uma atmosfera onírica e continua a influenciar compositores atuais. Durante a apresentação, será recitado o poema que serviu de inspiração para a obra e serão indicadas as melhores gravações para ouvir a peça. O minicurso, portanto, irá proporcionar uma experiência sensorial que evidencia a fusão entre as artes e a genialidade de Debussy e Mallarmé.

Palavras-chave: Poesia simbolista, música impressionista, ambiguidade, atmosfera onírica


ABSTRACT

This short course aims to analyze the piece “Prélude à l'Après-midi d'un Faune” by the French composer Claude Debussy (1862 - 1918), which was composed between 1892 and 1894 and premiered on December 22, 1894. The Prelude is inspired by the poem of the same name by Stéphane Mallarmé, establishing a deep connection between music and symbolist poetry. The study highlights the innovative aesthetics of Debussy's work, which evokes a dreamlike atmosphere and continues to influence contemporary composers. During the presentation, the poem that inspired the work will be recited and the best recordings will be recommended to listen to the piece. The short course will therefore provide a sensory experience that highlights the fusion between the arts and the genius of Debussy and Mallarmé.

Keywords: Symbolist poetry, impressionist music, ambiguity, dreamlike atmosphere



  1. INTRODUÇÃO

Claude Debussy, foi um compositor francês do final do século XIX e início do século XX, e um dos precursores do modernismo musical, distinguido por sua singularidade estilística, que amalgamou harmonias ousadas e uma perspectiva multissensorial e transcendentalmente evocativa. Sua música, uma síntese de sensações e emoções, reflete a essência do Impressionismo, apesar de Debussy não aceitasse ser classificado como impressionista.

O poema sinfonico “Prélude à l'Après-midi d'un Faune” (Prelúdio à Tarde de um Fauno), concebido entre 1892 e 1894, foi apresentado pela primeira vez ao público geral em Paris na Société Nationale de Musique, em 22 de dezembro de 1894, sob a direção magistral de Gustave Doret, e ela logo foi considerada um verdadeiro divisor de águas na história da música. Essa obra-prima do Impressionismo musical, caracterizada por uma estética inovadora e uma abordagem sinestésica, revolucionou a criação musical, desbravando novos horizontes expressivos. Além disso, muitos críticos e compositores consideram essa composição como o marco inicial da música moderna ocidental, aliás, é o compositor Pierre Boulez quem afirma que a música moderna nasceu com Debussy.

Nesta exposição iremos explorar a forma como Debussy emprega elementos como timbre, textura e harmonia para criar uma atmosfera onírica e sensual em sua peça. Analisaremos também a influência do poema “L'Après-midi d'un faune” de Stéphane Mallarmé, que serviu de inspiração para Debussy criar o seu Prelúdio. Mostraremos como a fusão da música com a poesia simbolista deu origem a uma obra-prima que continua a fascinar os ouvintes e inspirar compositores até hoje.

  1. O POEMA DE MALLARMÉ E O PRELÚDIO

Versa o poeta essas belas palavras no início de seu poema: “Quero perpetuar essas ninfas”. O responsável por essas palavras é o poeta simbolista francês Stéphane Mallarmé, o autor de uma obra poética ambiciosa e difícil, além disso, Mallarmé promoveu uma verdadeira renovação da poesia na segunda metade do século XIX; e os verso pertencem ao poema — ou a Écloga, como classifica o autor — L’après-midi d’un Faune (A Tarde de um Fauno). Aqui temos um cenário composto por ninfas, tomado por uma atmosfera onírica e erótica, além da presença de nosso principal personagem: um fauno dotado de incertezas (SIMÕES, 2018, P. 39).

O fauno é um semideus descrito com a aparência de humano e bode, e que se deleita com a imagem de ninfas sem alcançá-las e toca uma flauta. O poema onírico de Mallarmé  trouxe como característica fundamental: a indeterminação na linguagem (Campos, Pignatari & Campos, 1974).

O poema levou dez anos para ser publicado (de 1865 à 1876). Foram duas versões rejeitadas, a primeira delas foi feita para o teatro — tida como impossível para esta finalidade em função da falta de um  desenvolvimento concernente a uma verdadeira narrativa —  e a segunda foi no formato de livro (SAFATLE, 2010). A insistência do escritor com essa obra levou à sua conclusão com modificações importantes, dentre elas, a presença constante de  holófrases que acabam por confundir o que seria sonho, realidade e desejo. Além disso, a imprecisão da linguagem no poema faz com que qualquer tentativa de interpretação seja relativa para não dizer que seja impossível (CAMPOS, PIGNATARI & CAMPOS, 1974, p.110).

O que chama atenção nesse poema, além da característica de sua composição, marcadamente imprecisa, foi ter sido o ponto de partida para outras manifestações artísticas. Podemos destacar, inicialmente, a composição musical de Claude  Debussy e, posteriormente, o balé coreografado por Nijinsky (SIMÕES MARINO, 2013, p. 191). Nessas obras que adaptam o poema de Mallarmé ainda podemos encontrar a imprecisão e a indeterminação   de   sentido característico do modernismo.

A revolução mallarmeana, que invadiu o mundo literário já se fazia conhecida no meio cultural parisiense, em especial pelos artistas que frequentavam reuniões na casa do escritor, e Debussy estava entre eles. No entanto, Mallarmé era quase totalmente estranho aos compositores de sua época. Ao contrário do que se passou com os pintores, o poeta não chegou a conhecer pessoalmente nenhum dos grandes compositores e tampouco trocou correspondência com qualquer um deles (NECTOUX, p. 159). À exceção do jovem Debussy — então, um pianista recém-chegado de Roma que ainda não tinha composto nenhuma de suas obras de maior envergadura e nem era conhecido fora de seu círculo de colegas e professores —, apenas alguns compositores de menor influência e prestígio participaram do círculo social do escritor.

O contato com a complexidade da poesia de Mallarmé, isto é, com o “intraduzível” de sua linguagem, certamente foi instigante para o jovem compositor. Mas, Debussy fez questão de observar que a música deste Prélude é uma ilustração muito livre do belo poema de Mallarmé e não tem, de forma alguma, pretensão de ser uma síntese tão precisa dele. Para o músico, tratava-se de uma sucessão de cenários através dos quais se moviam os desejos e os sonhos de um fauno, no calor da tarde, e após perseguir ninfas e náiades, a figura mitológica, inebriada, abandonava-se ao sono.

Stéphane Mallarmé como um fauno, na revista literária Les hommes d'aujourd'hui, 1887.

No exemplar autografado de A Tarde de um Fauno, com o qual Mallarmé presenteou o compositor na estreia do Prélude, o poeta ressaltou, em verso, a luz que brilhava na flauta, ao sopro de Debussy. Essa luz ainda brilha e, naquele momento tão especial, a tarde do Fauno preludiava também a aurora da música moderna do século XX.

  1. POEMA COMPLETO DE MALLARMÉ 

Com 110 versos em dísticos de alexandrinos rimados, L’après-midi é provavelmente um poema simbolista por excelência, por descrever em forma de monólogo, numa vagueza sugestiva, os delírios sensuais de um fauno que acorda de sua sesta para perseguir ninfas — ou para se lembrar de encontros anteriores com ninfas.

A tradução que será apresentada aqui é a de Décio Pignatari, presente no volume Mallarmé, organizado por ele e pelos irmãos Campos, sendo publicada pela primeira vez em 1978. A tradução de Décio é bastante famosa, no entanto, ela não é apenas uma tradução, mas sim uma “Tridução”, isto é, um trabalho triplo em que, para cada verso, Décio propõe três possibilidades diferentes de tradução.

Frontispício de L'après-midi d’ún faune, por Édouard Manet.

Contudo, vejamos agora a tradução de Pignatari do poema A tarde de um Fauno, de Mallarmé, completo:


Quero perpetuar essas ninfas.

                                                 Tão claro

Seu ligeiro encarnado a voltear no ar

Espesso de mormaço e sonos.

                                                 Sonhei ou…?


Borra de muita noite, a dúvida se acaba

Em mil ramos sutis a imitar a mata,

Prova infeliz de que eu sozinho me ofertava

À guisa de triunfo a ausência ideal das rosas.


Reflitamos…

                 E se essas moças, minhas glosas,

Não passarem de sonho e senso fabulosos?

Fauno, dos olhos da mais casta, azuis e frios,

Flui a ilusão com uma fonte em prantos, rios:

Mas, em contraste, o hálito da outra, arfante,

Não é o sopro de um dia quente nos teus pelos?

Mas, não! No pasmo exausto e imóvel, a manhã

Se debate em calor para manter-se fresca

E água não canta que da avena eu não derrame

No bosque irrigado de acordes — e o só sopro

Que flui da flauta dupla prestes a exalar-se

Pronto a extinguir-se antes que se disperse em chuva

Estéril, é somente o sopro no horizonte

Sem uma ruga a perturbá-lo, da visível

E calma inspiração artificial do céu.


Ó orla siciliana das baixadas calmas,

Que êmula de sóis, minha vaidade pilha,

Sob centelhas de flores, taciturno, CONTE

“Que aqui com arte e engenho vinha eu domar

Caules ocos no glauco ouro azul de longínquos

Verdes, às fontes dedicando seus vinhedos,

E ondulava um brancor animal em repouso:

E que ao prelúdio lento em que nascem as flautas,

Este vôo de cisnes, ou náiades! foge

Ou mergulha…

                    Arde a tarde inerte na hora fulva

Sem traço da arte vária pela qual fugiu

Tanta núpcia ansiada por quem busca o la:

Despertarei então à devoção primeira,

De pé e só sob uma luz que flui de outrora,

Lírio! e um de vós todos pela ingenuidade.


Mais que esse doce nada, arrulho de seus lábios

O beijo que, bem baixo, é perfídia segura,

Atesta uma mordida este meu seio virgem,

Misteriosa marca de algum dente augusto;

Mas, chega! que esse arcano elege por amigo

O junco vasto e gêmeo sob o céu tocado:

Ei-lo que chama a si a turbação da face

E num extenso solo sonha que entretemos

A beleza ao redor, mediante confusões

Falsas entre ela própria e o nosso canto crédulo —

E tanto quanto alcance um módulo amoroso

Faz que se esvaia a ilusão banal de dorso

Ou de lado, seguidos pelo olhar sem ver,

Uma linha monótona, sonora e vã.


Volta, pois, instrumento de fugas, maligna

Flauta, a reflorescer nos lagos onde me ouves:

Do meu tropel cioso, irei falar de deusas

Por muito tempo — e em muita pintura profana

À sua sombra hei ainda hei de enlaçar cinturas;

E quando a luz das uvas tenha eu sorvido

Banindo um dissabor por fingimento oculto,

Gozador, ao verão do céu oferto os bagos

E soprando nas peles translúcidas, ávido

E ébrio, fico olhando através até a noite.


Reavivemos, ninfas, LEMBRANÇAS diversas.

“Pelos juncos, o olhar violava as colinas

Imortais, que afogam na onda a queimadura,

Soltando gritos de ira contra o céu da mata;

E o banho esplendoroso dos cabelos some

Em calafrios e claridades, pedrarias!

Precipito-me — e eis a meus pés, enroscadas

Langorosas haurindo esse mal de ser dois,

Duas carnes dormindo entre os braços do acaso:

Sem desfazer o enlace, arrebato-as e alcanço

Rumo a esse alcatife, odiado pela frívola

Sombra, de rosas desperfumando-se ao sol,

Para esse embate igual ao dia que se consome.

Ó cólera das virgens, eu te adoro, gozo

Feroz do fardo nu e sagrado que se esquiva,

Fugindo à boca em água ardente, quando um raio

Faz tremer! o temor mais secreto da carne:

Dos pés da desumana ao peito da mais tímida

Que a pureza abandona, orvalhada ora por

Lágrimas tristes ou não tão tristes vapores.

Meu crime foi o de ter, contente de vencer

Temores infiéis, partido ao meio a moita

De beijos, pelos deuses tão bem guarnecida;

Sob as pregas felizes de uma só (guardando

Com simples dedo, a fim que o seu candor de pena

Se maculasse na emoção de sua irmã —

Aquela que é pequena, ingênua e não se peja:)

Que de meus braços moles por delíquios vagos

Liberta-se essa presa para sempre ingrata,

Sem pena do soluço ainda em mim cativo.


Azar! Hão de arrastar-me outras ao prazer,

As tranças emaranhando aos chifres desta fronte:

Tu sabes, vida minha: púrpura e madura

Toda romã estala em zumbidos de abelhas;

E o nosso sangue, amante de quem vai sugá-lo,

Escorre pelo eterno enxame do desejo.

Na hora em que se banha o bosque em cinza e ouro,

Uma festa se exalta na ramada extinta:

Etna! É em meio a ti, visitado por Vênus,

Pousando em tua lava o calcanhar ingênuo

Se troa um sono triste ou desfalece a flama.

Minha, a rainha!

                        Ó, punição…

                                            Não, mas a alma


Vazia de palavras e este corpo espesso

Tarde sucumbem ao silêncio meridiano:

Sem mais, dormir no esquecimento da blasfêmia,

Na areia ressupino e sedento — e sequioso

Oferecer a boca ao astro audaz dos vinhos!


Ninfas, adeus: vou ver a sombra que vos tornais.

  1. A COMPOSIÇÃO DE DEBUSSY 

Debussy manteve uma estreita relação com a literatura. Segundo Molinari (2019, p. 13), essa influência literária transcende as canções e poemas sinfônicos. Suas obras líricas refletem essa conexão, inspiradas em autores como Maeterlinck, cuja peça “Pelléas et Mélisande” foi musicada por Debussy em 1902. Outras influências literárias incluem Gabriele D'Annunzio em “Le Martyre de saint Sébastien” (1911), Dante Gabriel Rossetti em “La Damoiselle Élue” (1888) e Edgar Allan Poe nas obras inacabadas “La Chute de la Maison Usher” e “Le Diable dans le Beffroi”. Essas colaborações demonstram a busca de Debussy por novas formas de expressão artística, fundindo música e literatura, com contextos e motivações únicos em cada obra. Essa influência literária também se manifestou — é claro — ao tomar contato com “L’Après-midi d’un faune”, de Mallarmé, criando portanto um Prelúdio que evoca uma atmosfera sonhadora e impressionista.

Se a música moderna tem um ponto de partida, podemos considerar, segundo Paul Griffiths, que é a melodia da flauta que abre o Prelúdio de Debussy (1987, p. 7).  Essa melodia é um marco histórico da música moderna, caracterizado por apresentar desenvolvimentos cujas resoluções não são motivo de preocupação. Logo no início da música, como observa Platzer (2009), o ouvinte se perde na harmonia, “dado que as sucessões de acordes escutados deixam de corresponder aos encadeamentos habituais” (p.254). Nessa música, fez-se um uso diferente da harmonia — que é o que permite a organização do movimento musical —, pelo uso da harmonia não-funcional em que  ocorrem  quebras  sobre  as  tensões  e  distensões  no  desenvolvimento,  o  que  provoca  aos ouvidos uma impossibilidade de prever o que acontecerá na música (SAFATLE, 2010, p.19). Um tempo musical que pode parecer estático, alternando movimentos de som e silêncio. 


L'Après-midi d'un faune, de Debussy (Breitkopf & Härtel, Wiesbaden - 1987)

Debussy chamou sua música de “Prelúdio”, pois o compositor planejava fazer uma continuação, formando uma Suíte sinfônica, mas o restante das peças nunca veio.

O poeta Paul Valéry contava que a ideia do Poema virar música muito preocupava Stéphane Mallarmé, ele não desconfiou que seus versos iriam se tornar uma obra sinfônica tão inovadora. Escreveu ele: — “A música não produziu nenhuma dissonância em relação ao meu texto, senão que verdadeiramente foi muito mais longe ao reproduzir a saudade e luz”. Alem disso, esse depoimento do autor dos 110 versos que originaram o Poema Sinfônico de Debussy, mostra que foram apenas 10 minutos que revolucionaram a música de maneira radical. Ainda que lembre Wagner, vai muito mais longe. Com essa peça, ficam para trás a simetria dos compassos, a precisão rítmica e a relação hierárquica entre melodia e acompanhamento. Como já foi dito: segundo Pierre Boulez, aqui nasce a Música Moderna.

L'Après-midi d'un faune, de Debussy (Breitkopf & Härtel, Wiesbaden - 1987)

Foi no verão de 1893 que Debussy fez uma pré-estreia da obra, ele apresentou para um público selecionado — além do poeta, Henri de Régnier e Raymond Bonheur —, ao piano, a primeira versão do Prélude à l’Après-midi d’un Faune — provavelmente, ainda sob o nome “Prélude”, “Interludes et Paraphrase finale pour L’Après-midi d’un Faune”. Mesmo em seu estado inicial e com a gama limitada de timbres do piano, a peça causou forte impressão em seu público; conforme o compositor escreveu em carta a Georges Jean-Aubry, no dia 25 de março de 1910, Mallarmé ter-lhe-ia dito, após uma longa pausa: “Eu não esperava por coisa parecida! Essa música prolonga a emoção do meu poema e lhe situa o cenário mais apaixonadamente do que a cor.” (NECTOUX, p. 168).

Cerca de um ano depois dessa ocasião, o poeta é convidado por Debussy para a première do poema sinfônico; o evento suscita uma entusiástica carta de aprovação e um dos legendários exemplares de L’Après-midi, cuja dedicatória consistia num dos famigerados quartetos de ocasião de Mallarmé. Como Nectoux (p. 172) sugere, o escritor teria permanecido na memória de Debussy como autor desse célebre poema sensual.

  1. A INSTRUMENTAÇÃO DO PRELÚDIO

A instrumentação do Prelúdio à Tarde de um Fauno é outro aspecto inovador. Debussy utiliza uma combinação de 3 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 1 corne-inglês, 4 trompas, 2 harpas, 2 crótalos (pequenos pratinhos de dedos, de origem egípcia) e as cordas (primeiros e segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos) para criar uma textura sonora única. A ausência de metais, como trompetes e trombones, confere à música uma sensação de leveza.

O tempo da peça é marcado como “Très modéré” (Muito moderado) na partitura e a estrutura dela não é convencional, pois, ao vez de seguir a forma tradicional de uma sinfonia ou concerto, ou até a “forma sonata”, por exemplo, Debussy opta por criar uma narrativa musical livre que evoca sensações e atmosferas. Com essa peça, ficam para traz a simetria dos compassos, a precisão rítmica e a relação hierárquica entre melodia e acompanhamento. O solo de flauta no início da peça representa o Fauno despertando, enquanto as harpas criam uma atmosfera etérea que remete os sonhos.

O primeiro tema aparece na flauta, logo no início, desacompanhada dos outros instrumentos. É mais ou menos aos 3m52s que temos, no clarinete, um segundo tema, totalmente derivado do primeiro. Ele vai nos conduzir à seção central da obra, dominada pelas cordas. O próprio clarinete dá a deixa para o terceiro tema, nas madeiras aos 5m41s. As cordas assumem de modo espetacular, sob incisos das madeiras aos 6m20s. O que parece com o auge do movimento vai perdendo rigor e vai ficando cada vez mais esparso. Além disso, um violino solo, aos 7m16s, toca o terceiro tema. Mas logo depois uma flauta, aos 7m28s, traz o primeiro tema de volta e a música segue sem rumo. O oboé, os clarinetes e o corne inglês participam desse momento, até que a flauta volta, sob um acorde de trêmulos nas cordas. E, com uma alusão a todos os temas, a música vai acabando.

Contudo, a música de Debussy influenciou gerações de compositores, desde Igor Stravinsky até Olivier Messiaen. Ela continua a fascinar os ouvintes com sua beleza etérea e profundidade emocional, demonstrando a capacidade da música de poder transcender o tempo e o espaço. Em resumo, o Prelúdio à Tarde de um Fauno é uma obra-prima que representa um marco na história da música. Sua abordagem inovadora ao Impressionismo musical, combinada com uma instrumentação única e uma estrutura não convencional que torna essa peça um exemplo da capacidade da música poder inspirar e influenciar muitas gerações.

  1. GRAVAÇÕES RECOMENDADAS

Depois da exposição da peça, iremos apresentar agora algumas gravações que selecionamos e que consideramos excelentes para quem deseja usufruir dessa belíssima música. Aqui estão gravações das maiores orquestras do mundo sob a regência de grandes maestros.   

A primeira gravação que trazemos aqui é a de Claudio Abbado com a Filarmônica de Berlim, de 2001. Também contamos com a sublime presença da flauta de Emmanuel Pahud, o primeiro flautista dessa Filarmônica. Nós presenciamos aqui uma execução inspirada, além de uma engenharia de som muito impressionante; em outras palavras: ela é uma versão imprescindível. Link: https://open.spotify.com/track/4NXmcUMQauqEtDYDgP0MEi?si=uG93rL5BRYepMOO8oyy0XQ

 A segunda gravação que destacamos é a do maestro Bernard Haitink, com a Orquestra do Concertgebouw, de Amsterdã, em 1986. Essa gravação é espetacular, e o destaque aqui é o naipe das madeiras, elas fazem a diferença nessa gravação. Link: https://open.spotify.com/track/14a2GY8IphgFfLx5bIpcOL?si=tyhRsWfRR8u9bnTkgPrJag

Em seguida temos a L'Orchestre de la Suisse Romande, com a regência de Ernest Ansermet. Temos aqui uma boa transferência digital do som analógico de 1957, aliás, essa gravação é preciosa porque mostra Ansermet em seu auge, com sua orquestra suíça. Link: https://open.spotify.com/track/0DiOhz4hGJYo8sqOmMmFM9?si=KyltgxwNSfy8z5Ctod3fqA

Por fim, temos o grande maestro Pierre Monteux, com a Sinfônica de Londres. Monteux era o regente francês do começo do século XX que estreou vários balés de Stravinsky, bem como do próprio Debussy. Portanto, trata-se de uma versão de alguém que esteve lá, nos primórdios do modernismo. Essa gravação, de 1961, é obrigatória! Link: https://open.spotify.com/track/0MDo6249MW0DPFwg9ut1Nk?si=2TyEWcsHS6izsBKKOingyw

  1. CONCLUSÃO

Contudo, vimos neste curso que a obra “Prélude à l’Après-midi d’un Faune” de Claude Debussy não apenas representa um marco na transição entre o romantismo e a música moderna, mas também encapsula a essência do Impressionismo musical, apesar da relutância de Debussy em ser rotulado como tal. Ao fundir elementos da literatura, especialmente a poesia de Stéphane Mallarmé, Debussy cria uma atmosfera onírica e sensual que transcende as convenções musicais de sua época. A instrumentação inovadora e a estrutura não convencional da peça desafiam as expectativas, proporcionando uma experiência auditiva única que reflete os desejos e os sonhos do fauno, personagem central do poema de Mallarmé.

A conexão entre a música e a poesia simbolista é fundamental, demonstrando como Debussy se deixou influenciar por essa linguagem imprecisa e evocativa, que promove a indeterminação e a subjetividade. Essa obra não só transformou a forma como a música era composta e ouvida, mas também abriu caminho para novas criações artísticas nas décadas seguintes, influenciando compositores renomados e continuando a cativar ouvintes ao longo do tempo.

Em suma, “Prélude à l’Après-midi d’un Faune” é mais do que uma composição; é um testemunho da capacidade da arte de transcender limites e comunicar emoções de forma profunda e evocativa. Através de sua música, Debussy não apenas ilustrou um poema, mas também previu o futuro da música moderna, deixando um legado que perdura até os dias atuais e continua a inspirar novas gerações de músicos e ouvintes.


REFERÊNCIAS:

FONSECA, Rafael. (1894) DEBUSSY Prelúdio da tarde de um fauno. Blog Guia dos Clássicos, 2014. Disponível em: https://guiadosclassicos.blogspot.com/2014/10/1894-debussy-preludio-da-tarde-de-um.html?m=1 . Acesso em: 16 nov. 2024.

GRIFFITHS, Paul. A música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar Editor, 1987.

INNECO, Alexandre. O maestro explica o Prelúdio à Tarde de um Fauno. YouTube, 2023. Disponível em: https://youtu.be/cwVlafIObYM?si=JwyF1IG7yvso4g0O . Acesso em: 23 nov. 2024.

MALLARMÉ, S. (1974). Mallarmé. (Trad. de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos). (pp.81-113). São Paulo: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1876).

MOLINARI, Yuri Amaury Pires. Traduzindo a música de Mallarmé: Considerações sobre os Trois poémes de Stéphane Mallarmé, de Claude Debussy. – Curitiba, 2019.

NECTOUX, Jean-Michel. Mallarmé - Peinture, musique, poésie. Paris: Adam Biro, 1998.

PLATZER, F. Compêndio de música. Rio de Janeiro: Edições 70, 2009.

TORRES, Rafael. Debussy: Prelúdio para a Tarde de um Fauno - Análise. Araraneon, [s.d.]. Disponível em: https://www.araraneon.com.br/post/debussy-prel%C3%BAdio-para-a-tarde-de-um-fauno-an%C3%A1lise. Acesso em: 23 nov. 2024.

SAFATLE, V. Debussy e o nascimento da modernidade musical. In Programa de concerto, setembro 2010. Governo do Estado de São Paulo. São Paulo: OSESP.

SIMÕES MARINO, A. Prelúdio à Tarde de um Fauno — Sobre o Sujeito como Insistência. Psicanálise & amp; Barroco em Revista, [S. l.], v. 11, n. 1, 2019. DOI: 10.9789/1679-9887.2013.v11i1.%p. Disponível em: https://seer.unirio.br/psicanalise-barroco/article/view/8685. Acesso em: 23 nov. 2024.

SIMÕES, Hugo. A morte do Divino em “A Tarde de um Fauno”. CLARABOIA, Jacarezinho/PR, v.9, p. 39-54, jan./jun., 2018. ISSN: 2357-9234. 

SCANDOLARA, Adriano. A tarde de um fauno. Escamandro, 29 abr. 2014. Disponível em: https://escamandro.wordpress.com/2014/04/29/a-tarde-de-um-fauno/ . Acesso em: 23 nov. 2024.

Comentários

Postagens mais visitadas