Em Busca da Presença Perdida
Em Busca da Presença Perdida
Por Janilson Fialho
O ser humano é um hermeneuta por excelência, ou seja, ele não vive sem interpretar as coisas, ou mais precisamente, ele não vive sem interpretar a si-mesmo, o mundo e a divindade. Ele contempla o mundo pela "Vor-vertändnis" (do alemão: pré-compreensão) e pelo "Ver-stehe" (compreender ou compreensão), nos significados possíveis dados pelo filósofo Heidegger. Para esse filósofo alemão, a pré-compreensão do sujeito está estreitamente ligada a sua própria circunvisão, ou seja, é o sentido ou interpretação que o sujeito atribui a algo e que está, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia; já a compreensão está vinculada ao sentido, isto é, ao existirmos, abrimos campos de sentido em virtude dos quais algo aparece enquanto algo, ou seja, compreendemos. Desse modo, o ser-aí pratica uma ação: ela deve fazer sentido para ele compreender. No entanto, o ser humano enquanto sentimento da presença foi esquecido por conta do ser humano mestre da hermenêutica.
A tradição metafísica legou um conhecimento maravilhoso para a humanidade, mas ele também legou um desprezo racional absurdo a tudo o que é matéria e corpo. Dito isto, apresentaremos aqui uma contestação a essa tradição hermenêutica que desprezou os sentidos. Portanto, diremos que não devemos inferiorizar a matéria, afinal, a vida é feita de paladar, olfato, olhares e tato. A presença marca boa parte de nosso cotidiano, ou seja, de nossa vivência. Deste modo, a comida que apreciamos pode ter muitos sentidos, mas ela causa impacto propriamente no seu sabor, ela faz algo com nosso corpo, e os perfumes então podem ser coisas inebriantes, o tato pode despertar sensibilidades, a visão pode ser uma relação intensa de ver e ser visto.
Um livro que descreve perfeitamente isso, ou seja, a experiência sensorial como uma determinação ao ser, é o grandioso romance "Em Busca do Tempo Perdido", do escritor francês Marcel Proust. O livro mostra a trajetória de um homem — muito provavelmente o próprio Proust — chamado Charles Swan buscando um significado que dê propósito a sua vida: seu objetivo é parar de perder tempo e começar a apreciar a existência em si, enquanto há tempo. Mas como ele pode conseguir isso? Onde ele pode encontrar tal coisa? Ele conseguiu aprender tal coisa no olhar e no sentir as pequenas coisas, ou melhor, ele removeu o véu que estava sob aquilo que procurava ao sentir o gosto da madeleine (um bolinho). A sensação abriu nele um processo fenomenológico único que o possibilitou visitar seu passado e compreender sua condição existencial naquele momento. Portanto, é tomando o corpo como ponto de partida que o sentido de sermos no mundo se constitui, ou ainda: nossa condição existencial parte de um princípio estético, isto é, nossa existência está atrelada diretamente a um corpo que sente e percebe.
A abertura para o mundo, segundo o filósofo Merleau-Ponty, acontece via percepção do corpo, onde se entrelaçam diversos movimentos que estabelecem uma relação com o mundo por meio de um conjunto de correspondências vividas. Nosso campo perceptivo é um campo existencial que constitui a presença daquilo que aparece, ou como diz Iraquitan Caminha ao refletir sobre Merleau-Ponty: "Toda percepção é realização de um corpo situado radicalmente no mundo. Quando se lança o olhar para ver alguma coisa, a visão que nasce desse olhar é sempre a partir de um lugar em que o corpo está situado." (Iraquitan Caminha, em "10 lições sobre Merleau-Ponty").
Deste modo, a experiência perceptiva é uma aproximação, um contato, uma presença com as coisas mesmas, do modo como se dão. Não se trata de um conteúdo objetivo nem científico, mas o modo como as coisas aparecem a partir das experiências vividas por um corpo no mundo-da-vida no ato de perceber, que acontece anterior à qualquer reflexão filosófica ou científica. Por isso devemos tratar a percepção do sensível como um processo fenomenológico, porque a sensação é única ao sujeito e não há como apreender ela categoricamente, porque ela não é um objeto manipulável. Todavia, podemos afirmar isso dando como exemplo o esforço que Swan tem ao querer alcançar suas memórias de infância ao comer outra vez a madeleine, mas tal esforço mostrou-se em vão, porque ele não sentiu a mesma sensação de outrora que permitiu a abertura das memórias.
O exemplo de Swan e a madeleine ilustra perfeitamente sobre a irrepetibilidade das sensações e memórias. Mesmo que o ato de comer a madeleine tenha sido o mesmo fisicamente, a sensação e a evocação de memórias não se repetem da mesma forma. Isso demonstra que as experiências não são apenas reações mecânicas a estímulos, mas envolvem um entrelaçamento complexo entre a memória, o sentimento e o contexto do momento. Desta maneira, podemos falar das limitações da reflexão científica e filosófica, do seguinte: a distinção entre a percepção como experiência direta e a análise científica ou filosófica das experiências sugere que, enquanto a ciência pode tentar categorizar e entender fenômenos, a vivência imediata da percepção transcende essa abordagem. A reflexão que ocorre após a experiência pode ser valiosa, mas não pode capturar a essência do que foi sentido no momento da percepção, ou seja, a essência da "coisa em si".
Contudo, todos nós temos muito a aprender com a literatura de Proust, porque é lá — Em Busca do Tempo Perdido — que está um ensinamento precioso que nos torna mais sensíveis e nos orienta a olhar para as coisas que nos entornam todos os dias. Ele nos faz enxergar para além do hábito e reencontrar toda a beleza dos pequenos momentos como chaves fenomenológicas de compreensão de si mesmo — a sensação podendo se mostrar como chave da memória, por exemplo. Por conseguinte, podemos dizer — tomando o exemplo anterior como ponto de partida — que sentir o cheiro de um perfume pode trazer todos os momentos vividos em outro tempo, isto é, pode te fazer lembrar de pessoas especiais ou de situações maravilhosas ou tristes. Enfim, o corpo desvela a percepção de existir no mundo, e isso está em conseguir sentir as coisas mais simples, como um banho gelado num dia de calor, o cheiro de café recém passado, a sensação de terminar um livro incrível. A sensação faz o sujeito estar presente no mundo.
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