Primeiras impressões acerca de Grande Sertão: veredas, por Janilson Fialho

Primeiras impressões acerca de Grande Sertão: veredas

Por Janilson Fialho

A escrita de João Guimarães Rosa, como muitos já sabem, é um grande desafio para o leitor. Sua página, como é dito por um personagem do filme O Cinema Falado, de Caetano Veloso, é assim toda salpicada desses bichinhos pretos (ponto, vírgula, ponto-virgula, dois pontos e travessão); dá p'ra saber que é dele só de olhar. Vamos ver um exemplo para termos essa experiência:

" Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser  se viu , e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram  era o demo. Povo prascóvio. Mataram. dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente  depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Cuvelo, então, o aqui não é dito sertão?"

Para superar tal dificuldade até recomendam o uso de dicionário, mas vejo que não precisa do dicionário! A leitura dele é uma experiência que aos poucos vai se acostumando. É como andar de bicicleta, por assim dizer! A princípio você não sabe bem o que fazer, mas algum tempo depois você se dá conta que já está galopando! Não podemos pensar que aquelas palavras peculiares são uma invenção do autor, aquilo é o dialeto dos mineiros, do povo do interior, portanto, para eles é sem dúvida mais fácil.

Guimarães Rosa tem a primazia de pôr reflexões com uma profundidade universal que o tira do mero regionalismo. E com isso não pense que ele acaba se distanciando do regionalismo, pelo contrário, ele mantém um equilíbrio bastante sucinto, entre o cenário regional e o mundo, o Sertão, por exemplo, assim ele diz: "Sertão: é dentro da gente", e "No centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo!"; até mesmo há temas e reflexões universais que, pelo modo do personagem Riobaldo se expressar, são verdadeiras máximas filosóficas, vejamos algumas:

"A vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho";

"Preto é preto? branco é branco? Ou: quando é que a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade";

"Eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! (…) Este mundo é muito misturado…";

"O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo";

"Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é";

"Quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade";

"O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia";

"A gente morre é para provar que viveu";

"Rir, antes da hora, engasga";

"Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só fazer outras maiores perguntas";

"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura";

"O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando";

"Viver é muito perigoso: sempre acaba em morte".

Sem querer desmerecer um livro escrito por um conterrâneo meu, que eu li a pouco tempo e gostei muito, mas vou ter que usá-lo como exemplo para fazer uma comparação, até mesmo por ele ter sido o último livro do gênero regionalista que li.

Primeiramente, faremos um breve resumo do autor do livro Pedra Rosada (1988), pois julgo que seja necessário por causa da falta de informações acessíveis, até mesmo para termos uma certa noção de quem estamos nos referindo neste texto sobre Guimarães Rosa.

O autor deste livro é o serrariense Odívio Duarte, o filho de um grande farmacêutico, também serrariense, chamado Ovídio Duarte. Só por curiosidade, o pai de Odívio foi um dos primeiros a se formar na Faculdade de Mediciana no Recife, em 1938, e logo em seguida foi morar em Serraria-PB, onde instalou uma farmácia, ele também atuou como deputado federal pela Paraíba, e estadual pelo Pernambuco. Ele teve como esposa uma mulher chamada Laura, e deste casamento nasceu o nosso escritor Odívio Duarte.

Sobre Odívio, podemos dizer que ele foi presidente do time Santa Cruz de Recife, e também foi presidente nacional e regional da sociedade de médicos escritores, da academia de letras e artes do nordeste brasileiro; sócio emérito da academia de medicina da Paraíba; do Instituto pernambucano da história de medicina e ciências. 

Bom, sobre seu livro, como já disse farei tal crítica com respeito ao conterrâneo, mas eu vejo que faltou uma profundidade em certos temas para além do enredo principal em Pedra Rosada. O que encontrei no livro de Odívio Duarte foi apenas os personagens desempenhando o seu papel linear, isto é, todos cumprindo com exatidão o seu destino literário imposto pelo autor sem ao menos questionar a própria natureza do papel que estavam desempenhando.

Para se ter uma ideia do que estou falando, o livro Pedra Rosada, de Odívio Duarte, é a típica história regional e popular do vaqueiro destemido que rapta a filha do patrão. Simplesmente isso, não ousando trazer mais alguma coisa ou novidade para o tema. Por isso que Guimarães Rosa aqui, a meu ver, e não apenas querendo evocar um cânone já consagrado como justificativa, pode ser considerado mais revolucionário, do que este e vários outros autores que pretenderam escrever sobre o tema sertão, por sua escrita ter algo mais além do regionalismo, ou seja, que possa acrescenta na história regionalista temas universais. Portanto, para se ter uma ideia clara,  me refiro a isso:

"Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, e aos pouquinhos, é razoável sofrer. E a alegria de amor  compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois e Deus, junto. Vi muitas nuvens."

Expressa-se bem a ambiguidade como uma certa capa da maldade humana, por exemplo. Até tem esses temas em Pedra Rosada, mas soa tudo tão simplório, tão caricato, que não passa de uma camada superficial, por não a ver tal ambiguidade já citada. Por exemplo, soa tão caricato a figura do coronel ser uma pessoa gananciosa e puramente malvada.

Pude ver em vários momentos diálogos com a essência dostoievskiana. Ora, vejam só esse diálogo com essa aparência dostoievskiana:

"Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo."

Posso dizer, por fim, que em 20 páginas de Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, foi possível encontrar tantas passagens com questões metafísicas e espirituais, que poderia passar um bom tempo escrevend sobre ela. Contudo, esse livro tem uma profundidade de cozinhar o juízo com tão pouco visto. Mas considero também boa a obra de meu conterrâneo.

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